terça-feira, 15 de julho de 2008

Contemplação

A tarde está caindo modorrenta e Victor lê o jornal, como sempre faz. É engraçado observá-lo interagindo com o texto, descobri que posso passar horas e horas fazendo isso. Nunca é monótono, tal é o sortimento de caretas e trejeitos, tão peculiares a ele. Arqueia e franze as escuras e espessas sobrancelhas e meneia a cabeça ora de cima para baixo, ora dum lado para o outro, e de novo para cima e para baixo. Resmunga baixinho, estala meia dúzia de muxoxos, cofia a barba inexistente, retorce sardonicamente os lábios rosados. Quase rio, cá com meus botões, ao assisti-lo nesse ritual diário que conheço tão bem, cada expressão de seu rosto bonito, cujas nuances posso ler tão claramente.

Vejo-as desde que o conheci, há anos, quando tentou me assustar com suas tristes idéias céticas para que eu me afastasse. Naquele dia atirou-me ao rosto um punhado de sofrimento íntimo mimetizando agressividade e lembro-me da fúria de suas palavras que mal podiam ocultar tanta angústia e solidão. Permanece muito viva a lembrança do enternecimento que senti então, uma vontade imensa, imensa de abraçá-lo e dizer-lhe que nada era tão ruim. Ainda vejo a surpresa em seu rosto quando, a despeito de seus esforços, eu lhe sorri e garanti que ele não me metia medo e que estava disposta a ficar. Passei no teste, eu acho, ele foi perdendo a reserva comigo e nos tornamos amigos, muito amigos.

Às vezes ele parecia carregar o peso do mundo nos ombros e me olhava tão, tão, tão dorido. Lembro-me de como o amparei diversas vezes nos braços enquanto chorava, tentando aliviar sua dor e mostrar que havia motivo para sorrir e acreditar. Ele sempre foi muito frágil e imensamente forte, num momento era a imagem da tristeza e no seguinte, os olhos brilhavam e brilhavam, como os de criança. Ainda agora ouço a risada debochada, contagiante, acompanhada de gestos febris que mal conseguiam traduzir seu contentamento ou sua excitação.

Recordo as madrugadas – tantas – que passamos em claro, bebendo e falando, falando, falando, sobre vida, arte, música, gente, e todos, todos os tipos de idéias e fantasias, as quais por vezes mesclavam-se com a realidade, conferindo ao mundo um brilho feérico, único. Construíamos histórias mirabolantes que eram extensões de nós mesmos, alimentados por nossas almas, sonhos, medos e desejos.

Desejos. Lembro-me dos olhos dele, fulgurantes, repletos deles, fitando-me num minuto e, no seguinte tinha as mãos no meu corpo, todo ele vibrando, ardendo, dissolvendo e me levando junto, prum mundo de formigamento. Recordo o gozo ruidoso, abundante, desfalecente, ele arregalava os olhos, desmesurados, depois de alguns momentos, como se procurasse compreender algo, como se a ordem do mundo tivesse sido invertida e ele demorasse algum tempo para encontrar sentido nas coisas novamente. Depois ria, primeiro de mansinho e depois com maior e maior intensidade, às vezes quase até às lágrimas e concluía que éramos incríveis juntos.

Então ele foi para outra cidade estudar e o mundo pareceu se partir em inúmeros pedaços, a vida sem ele por perto era um inferno e ele me dizia nas cartas que estava enlouquecendo, de saudades e de tristeza, assim como eu. Lembro que um dia liguei apenas para contar sobre um filme bobo que tinha assistido e fomos ficando, falando, falando, falando, não podíamos mais parar e choramos juntos, desesperados pela presença um do outro. Ainda o vejo descendo do ônibus na rodoviária quando voltou, esfacelado por abrir mão do sonho e eufórico por estar de volta, por estarmos novamente juntos, e juramos não mais nos separarmos.
E lembro quando nos separamos, as palavras duras dele, a mágoa e a raiva estampada nos olhos, a sensação asfixiante de encanto quebrado, membros quebrados, vida quebrada, ruída. E aprendi não sei como a viver sem contar tudo para ele, sem vê-lo todos os dias, sem ouvir a risada tão viva. Aprendi a viver amputada e sofri tanto que pensei morrer a cada hausto de ar que entrava pelas narinas. Encontrávamo-nos e o olhar dele era constrangido, doloroso, e o nó na garganta vinha com força, dilacerante, turvando a vista, molhando as mãos.

Os dias passaram, passaram e, um dia, eu me lembro, ele me olhou de um jeito diferente. Começamos um papo tímido, eu tremia, ele prendia a respiração, o que se falou se perdeu nas curvas da minha memória, mas ali reatamos a amizade, frágil, ansiosa, sofrida, a princípio, que foi-se solidificando gradualmente. E de novo, éramos amigos inseparáveis, que riam e falavam, falavam por horas a fio e pela noite adentro, compartilhando idéias, discutindo bobagens e se amando mais que nunca, como sempre é da segunda vez, depois que quase se perdeu aquilo que se amava.

Conservo a nítida lembrança dessas noites e desses dias, quando pude aprender a conhecer cada franzir de sobrancelha, cada sorriso do Victor, que está tão bonito ali, sentado no sofá, se dando conta nesse momento da minha presença aqui nesse canto, olhando-o com olhar perdido e um sorriso bobo nos lábios. Olha-me com expressão de interrogação, faz um gesto para que eu me aproxime e me puxa para o colo, perguntando “Que foi?” Eu sorrio “Nada.” Então ele também sorri, dá-me um beijo suave na ponta do nariz e conclui “Casei com uma mulher maluca.”

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
imagem: Vickie Davalos.

Mais Uma Vez


- Sonhei com você a noite passada. – a voz veio rouca pelo telefone.

- Mesmo? – ele arqueou a sobrancelha – E como foi o sonho?

- Úmido. – pronunciou lentamente.

Susteve a respiração. Como sentia a falta dela! A boca ficou seca, hesitou, receando romper o encanto. Após uma pausa, ela suspirou:

- Quero você.

Era o eco do que ele sentia, mas ficou surpreso que ela o dissesse. Tinham se amado muito, apaixonadamente. Pareciam perfeitos juntos. Mas nem só de amor vive o amor – assim descobriram. Embora ainda se quisessem tanto que doía, separaram-se depois de diversos desencontros. Sofreram sozinhos por alguns meses, e acabaram retomando o contato. Falavam-se sempre ao telefone, sobre quase tudo e quase nada. Incidentes, sucessos, dúvidas, mágoas. Só não davam voz àquilo que ainda fazia acelerar a pulsação de ambos, ao mero som de uma palavra banal como “alô”.

Combinaram o encontro às dez, num lugar público. Ele encostou o carro, ela entrou apressada. Cada ato era recheado com sabor clandestino. Encararam-se por alguns segundos eternos. Expectantes, a respiração irregular. Estavam ali de novo, depois de tanto tempo. Não sabiam bem o que faziam, mas sabiam que era impossível não fazer. O carro moveu-se lentamente pelo trânsito movimentado, enquanto conversavam sobre qualquer coisa desimportante. Não se dirigiam a nenhum lugar específico, tanto era o prazer de apenas estarem juntos. Não era racional, não fazia sentido, existia um milhão de motivos para que seguissem rumos distintos. Mas amor é teimoso e não morre tão fácil, por mais que se queira, por mais que o mate todos os dias.

Riam de alguma bobagem quando passaram em frente a uma profusão de horríveis luzes verdes, onde estava escrito “Motel Selva”.

- Vamos? – propôs, maliciosa.

Entre risadas, ele concordou. Por mais grotesco que fosse, aquela noite era mesmo uma grande travessura e detalhes assim só poderiam torná-la mais excitante.

Pegaram a chave na portaria – aonde escolheram o “Leopardo” entre outros felinos disponíveis – e seguiram para a suíte. Acesas as luzes, o ambiente era inusitado. Paredes pintadas de lilás com algumas manchas, pretendendo decoração temática, a cama com imensa cabeceira ornamentada com cetim azul berrante, espelhos no teto e em toda parte, luzes alaranjadas e um sortimento incrível de acessórios eróticos sobre uma mesa. Deliciados, concordaram que o ambiente era perfeito. Não queriam um ninho de amor, quanto mais vulgar, melhor.

Serviram-se no frigobar – duas cervejas – e brindaram. Não havia pressa. Ele tirou do bolso uma caixinha, ela fitou-o, curiosa. Eram dados, daqueles que dizem o que fazer. Beijar-lamber-morder-massagear-beliscar-interrogação. Boca-barriga-pés-nuca-orelha-interrogação. Era um desafio, doce agonia, a cama serviria como mesa. Jogaram uma, duas, três vezes. Mordida na nuca. Beijo na orelha. Lambida no peito. Na quarta – beijo na boca – não puderam mais e agarraram-se, sôfregos, mal conseguindo livrar-se das roupas. Gozaram como loucos, ruidosamente, mal ele a penetrou. Caíram de lado, arquejando, trocaram um olhar dolorido. Como tinham podido se separar, se era tudo tão certo? Como se separariam de novo, depois daquela noite? Procuravam a resposta à pergunta mútua um nos olhos do outro e então perceberam. Não se separariam. Era um recomeço, uma nova chance. Com as emoções afloradas, mergulharam um no outro, mais uma vez. A noite seria longa. Infindável.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
Imagem: autor desconhecido.

Atrofia

- Oi, que saudades...
- Eu também.
- Tudo bem? (pergunta de praxe)
- Tudo certo. (resposta de praxe)
- Senti falta de conversar com você.
- Lamentei que tenhamos nos distanciado.
- Eu também. Mas foi preciso, estava me machucando.
- Nunca quis machucá-la.
- Sei disso. Por fim eu entendi.
- E o que você entendeu?
- Que estava além de você corresponder ao que eu queria. Eu estava pedindo o que você não podia dar. O único jeito de me desvencilhar de você foi percebendo que por mais que eu estivesse apaixonada, tudo não passava de energia dispendida em vão, nunca ia dar em nada.
- Você não se apaixonou por mim, eu era apenas uma novidade que a estimulava mentalmente.
- Na minha idade tudo é paixão.
- Na minha a paixão já morreu.
- Então você é um ancião embalsamado de quarenta anos?
- Não é isso.
- Então explica.
- Acho que sou um pouco cínico para a paixão. Ademais, é melhor conservar o controle.
- Não concordo com isso.
- Quer dizer que paixão é algo bom?
- Depende.
- Odeio oligossílabos. Fale até cansar ou não falamos.
- Usando uma expressão bem lugar-comum, paixão é um mal necessário.
- Ah, é? Convença-me.
- Sabe muito bem que não se pode convencê-lo de nada que já não esteja predisposto a aceitar.
- (sorriso) Você entendeu. Argumente.
- Já leu “Admirável Mundo Novo”?
- Já. Qual o ponto?
- SPV. Sucedâneo de Paixão Violenta, uma vez ao mês. A descarga de adrenalina provocada pela paixão é essencial ao organismo.
- ...
- Você pode até não entender, mas a maioria das pessoas não se sente feliz vivendo num mundo morno, cinza.
- Aí já está extrapolando. Meu mundo não é cinza porque não estou apaixonado.
- Não me referi a isso. Não estou falando de se vincular necessariamente a outra pessoa. Estou falando de marasmo, de falta de entusiasmo pela vida, de tédio, de solidão, de frustração. Estou falando de acordar todos os dias, ao lado de alguém que não ama, ir prum trabalho que não o desafia, ficar preso no trânsito dessa cidade infernal, reprimir seus instintos e desejos até o limite, sem ter nada pra compensar. Entendeu?
- Você está diferente.
- Diferente como?
- Mais dura.
- Não estou sendo dura. Só não me importo mais em ferir o seu ego. Incomoda?
- Não. Não quero que seja doce, pode ferir.
- Nem sei se consigo te ferir...Você parece tão empedernido, às vezes.
- Não sou empedernido.
- Apenas frio, não é?
- (sorriso) Um pouco. Condicionamento.
- Como era mesmo o papo dos oligossílabos?
- O que quer que eu diga?
- Conta uma coisa...
- Pergunte.
- Por que você não muda a sua vida?
- Não tenho grandes ambições. Não a esta altura da minha vida.
- Quer parar com isso? Essa sua mania de se referir a si mesmo como um moribundo centenário me deixa louca.
- Eu me sinto velho. Ultrapassado, até. Uma aberração.
- O que há em você de aberração são só os seus fetiches. (sorriso) Afora isso, você se sente velho porque é um cético mal humorado, anti social e sombrio, que olha pro resto do mundo morto de enfado.
- Como você está eloqüente hoje!
- ...
- Pode ser que você tenha razão.
- Então responda à minha pergunta.
- Eu gosto da minha vida.
- Não, não gosta.
- A questão é que a minha vida é essa. Apesar de tudo, essa é a minha realidade. Não posso ir embora. Já tentei e descobri que a minha raiz está entranhada muito fundo nessa terra, que fora dessas paredes fico desorientado, sem chão. Não amo mais a minha mulher, mas não sei como ficar sem ela. Meu trabalho é tedioso, mas é o que eu faço. Por mais que eu fantasie sobre isso, não vai haver nenhuma mudança. Não há, na verdade, nada melhor pra mim aí fora.
- E por que não me disse isso antes?
- Eu não costumo dizer isso a ninguém.
- Você parece muito diferente do homem que eu conheci.
- Na verdade, não. Eu vivia recluso já naquela época, apenas não gosto muito de alardear essa condição.
- Mesmo a porta da gaiola estando aberta você não sai?
- Não é me fustigando que você vai me fazer sair da gaiola.
- E por que não sai?
- Aqui é seguro. Por mais que pareça sofrido...
- Você é que faz parecer sofrido.
- Eu sei que sim. Mas apesar das minhas muitas reclamações, não é tanto assim. Aqui é confortável, seguro, familiar. Entre essas grades estive a vida toda, aqui aprendi tudo o que eu sei. Aqui estão as minhas referências e as minhas lembranças, boas e más. Por aqui passaram todas as pessoas que já foram importantes pra mim. Tive muitos momentos felizes. Infelizes também, mas é aqui que eu sou eu, é desse jeito que eu sei ser eu. Aí fora pode ser sedutor, pode parecer que há possibilidades infinitas, mas não passa de ilusão. Não tenho anticorpos pro que ainda não conheço e não tenho certeza se posso produzi-los. Por mais que eu quisesse, não sei mais voar e tenho que aceitar isso.
- Que coisa triste. Você vive um personagem.
- De certa forma sim.
- Eu entendo. Quer que feche a porta de novo?
- Não, deixe recostada. Assim ao menos eu tenho a ilusão de que não saio porque não quero.
- Mas é isso mesmo.
- Não. Não saio porque minhas asas não podem mais.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
Imagem: autor desconhecido.

Privação de Sentidos


Encontrei-a noutro dia, por acaso, e a surpresa deixou-me estático. Ela sempre fora linda, eu me lembrava muito bem, mas nada poderia ter-me preparado praquela exuberância. Vestindo vermelho, apareceu do nada e enlaçou-me o pescoço, exclamando docemente o meu nome. Fui envolvido pelo perfume acre, com cheiro de mato, de vida, de calor vaporoso. Cheiro que dava vontade de morder. Que me invadiu as narinas e tomou o corpo todo, feito droga poderosa. O contato com a pele morena equivaleu a descarga elétrica, eriçando-me os pêlos e retesando cada músculo. Lembrei de sentir o corpo sinuoso sob o meu, de lhe arrancar gemidos urgentes, de me dissolver dentro dela. Pareceu que nós lembrávamos da mesma coisa. Sorrindo maliciosa, deu um passo atrás e encarou-me com os olhos escuros e profundos, onde tantas vezes tinha me perdido. Umedeceu os lábios lentamente com a língua, desafiando-me. Ela sempre tivera consciência do próprio poder e queria a confirmação de que eu continuava cativo, depois de todo aquele tempo. Aproximou-se e acariciou minha barba com a mão macia. Senti meu coração migrar do peito pra virilha, latejando dum jeito quase doloroso. Fechei os olhos por um instante, tentando me recordar do motivo pelo qual tínhamos terminado. Em vão. E ainda tentava lembrar quando ela tomou meus lábios com gana, fazendo-me esquecer até de quem eu era. O motivo que fosse era insignificante. Só importavam ela e o meu coração. Latejando.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005

Imagem: Ana Pereira.

sábado, 12 de julho de 2008

Domingo


Abro o olho e olho o teto o sol lá fora cada vez mais quente porra quem abriu a persiana? ai que preguiça um bocejo comprido só mais uns minutos não vão fazer mal tiro um cochilo rápido acordo babando no travesseiro ai minha cabeça tem jeito não marquei com a Gisa tenho que levantar chinelo no pé saio arrastando os calcanhares lavo o rosto enfio sunga e camiseta esfrego os olhos xô sono! uma xícara de café pego o jornal chamo o elevador bom dia Seu Geraldo calçada vou andando preguiçoso caramba quase pisei no cocô de cachorro desvio no último momento gente porca! a rua movimentada os carros buzinam sem dó da minha ressaca porra que dor de cabeça o sinal tá aberto do jeito que eu tô morro atropelado nem arrisco atravessar espero o sinal verde abriu vou arrastando o chinelo até a areia porra como o sol tá forte! tudo é claridade sol sol sol a areia tá quente pra caramba vou andando procurando a Gisa que não tá em lugar nenhum vai uma cadeira? não obrigado mas tá baratinho só dois reais! não obrigado eu busco rapidinho! saio andando antes que o cara me apareça com a tal cadeira arranco a camiseta hum que gatinha desvio duma menina brincando na areia porra aonde tá a Gisa? uns caras batendo bola perto de umas garotas toca! ai! porra desculpa! viu o que tu fez? tá limpo na boa! vejo a Gisa deitada na esteira e me jogo ao lado dela Tu tá atrasado ela me olha por sobre os óculos escuros Porra nem sei como cheguei em casa ontem! minha cabeça tá doendo pra caralho Vai na água que ajuda Agora não vou tomar um côco ô meu chapa! quanto tá? dois reais! geladinho? geladinho! tá aí valeu! tomei o côco e me larguei na areia disposto a continuar a minha soneca enquanto a Gisa tostava a bunda a gritaria foi aumentando e virando um transe morno amendoim água-de-côco coca-cola água skoll sorvete picolé sacolé biscoito-globo empada-praiana sanduíche-natural queijo-coalho mate guaraná salada-de-frutas camarão bronzeador saída-de-praia pulseirinha tatuagem-de-henna chapéu amendoim água-de-côco coca-cola água skoll sorvete picolé sacolé biscoito-globo empada-praiana sanduíche-natural queijo-coalho mate guaraná salada-de-frutas camarão bronzeador saída-de-praia pulseirinha tatuagem-de-henna chapéu Edu acorda! Hã? Tu tá babando na minha esteira há horas vamos embora Mas eu acabei de chegar! ela tava puta e o sol tava frio eu tinha dormido quase a tarde inteira saí andando atrás dela com o rabo entre as pernas imaginando qual seria o meu castigo ela não ia deixar barato com certeza tudo bem eu merecia tinha vacilado mas ela não precisava ter pegado tão pesado porra não me deixou ver o jogo do mengão.

Lívia Santana.
Uberlândia - julho/2005

Sempre Pode Piorar

Surpresa. Há momentos em que o mero som dessa palavra provoca calafrios. Não passa de um eufemismo safado pra “imprevisto” e geralmente acontecimento inesperado é também inoportuno. Se pudéssemos prever, ao abrir os olhos de manhã, qual o estado de espírito dos astros e entidades que regem o cosmos, com certeza nem sairíamos da cama nesses dias em que tudo parece comandado por um senso de humor diabólico. Acontece de tudo um pouco e sempre dá pra piorar.

Acordei hoje e topei com o dedinho do pé na quina da cama. Toda vez que isso acontece me pergunto – enquanto pulo num pé só pelo quarto – pra que serve afinal o raio do dedinho do pé. E sempre chego à mesma conclusão: não serve pra mais nada além de bater nalgum canto pontudo e matar o infeliz de dor. Eu podia viver tranqüilamente com apenas oito dedos nos pés, porcaria! Mas talvez aí eu batesse o outro dedo, então transformado em último dedinho...droga, de todo o jeito eu saio perdendo!

Depois de bater o recorde em imitar saci e desfiar um rosário inteiro de palavrões cabeludos, misteriosamente o dedo começou a doer menos. Santo remédio. Respirei fundo e me propus a começar de novo. Abri a janela e...chovia. Lá fora estava escuro – às nove da manhã – e o céu ostentava um tom plúmbeo capaz de desanimar a própria Poliana. Ainda assim, resolvi que o dia ainda não estava perdido. Tomei um banho quente, saquei o guarda-chuva e saí à rua.

Nem dez passos depois e um carro à toda velocidade passou, espalhando a enxurrada e me deixando encharcada. Talvez tenha sido um modo dele dizer que não tomei banho direito, vai ver esqueci de lavar atrás das orelhas. Maldito, tomara que aquaplane diante do próximo poste! Voltei pra casa e tornei a sair de roupa seca, já menos animada. Eu devia ter entendido o recado óbvio do universo e voltado pra cama, mas segui em frente – agora era questão de honra! Péssima idéia. Durante o correr do dia fiquei presa no elevador, minha unha quebrou, engasguei com café, o computador travou e a alça da mala arrebentou bem quando eu ia fechar. É, ainda tinha isso: eu ia pegar um avião.

O vôo, marcado pra sair às 19:50 do Rio, atrasou para às 20:30. Até aí normal, quem quer que já tenha viajado de avião ou que conheça a Gol ao menos de nome, sabe que nunca sai na hora mesmo. Sem me incomodar, enfiei o nariz num livro policial e o tempo passou sem que eu visse. Como o tempo estava medonho, pegamos turbulência entre Rio e São Paulo – o que já era de se esperar. Os passageiros se agarraram nas poltronas, teve gente rezando e as aeromoças tentavam andar pelo avião sem cair em cima de ninguém. Uma cena grotesca, absolutamente hilária, razão pela qual comecei a rir – baixinho, cá com os meus botões - e, não sei por que, teve gente me olhando feio. Ora, era engraçado mesmo! Medo de morrer? Que nada, se fosse a hora, não ia ter reza que segurasse o avião no ar! E não dava pra acreditar que eu era tão azarada assim: tanto avião pra cair e ia ser justamente o meu? Ah não! Não ia cair e pronto.

Dito e feito, desembarquei em Congonhas sã e salva pra fazer a conexão pra Beagá e o aeroporto estava intoleravelmente cheio. Aí sim eu entrei em pânico, tenho horror a ajuntamento de gente. Arre! Procurei um lugarzinho e me sentei, procurando me resignar. Dessa vez estava previsto pra sair às 22:10 o avião. Às 22:30 anunciaram aos “prezados passageiros” do meu vôo que não tinha sido possível o avião chegar até àquele aeroporto por causa do intenso tráfego aéreo e que íamos ser transferidos pra Guarulhos, com previsão de finalmente embarcar por volta da uma da madrugada.

Já teve a sensação de que um monte de gente caía fulminada à sua volta? Pois foi o que aconteceu. Por todo o saguão ecoou uma exclamação indignada em uníssono dos pobres passageiros, totalmente desanimados. Corri em busca de um telefone e os três primeiros que tentei estavam com defeito, não completavam a ligação nem à custa de pancada. Nessa hora eu perdi um pouco a minha fleuma, confesso. Que porcaria, oras, tem que acontecer tudo no mesmo dia? Entramos no ônibus pra Guarulhos e de cara o motorista foi apagando a luz, me forçando a guardar o livro – responsável pela minha sanidade até ali. Saco. Não dava pra ver nada da janela e descobri que dormir era impossível, porque sentados nas poltronas da frente estavam o Tonto e o Mais Tonto.

Eram dois sujeitos de terno e gravata, com uns trinta e poucos anos, absolutamente estúpidos. Percebia-se que eram advogados, mas de que espécie eu nem imagino. Sei que não os contrataria em hipótese nenhuma, pois não há como me convencer que um profissional que diz “pobrema” mereça algum crédito, a menos que seja peão de rodeio. Além de literalmente estropiarem a língua portuguesa, falavam com um sotaque carregado e horroroso, que tinha que melhorar muito pra ser considerado “mineiro”. Sotaque é uma coisa complicada, eu detesto quase todos – à exceção do baiano e do paraense. O carioca começando a frase com “porra” e exagerando nos esses pronunciados com som de xis, o paulistano com a fala cantada entremeada de “meus” à torto e à direito, o mineiro com o diabo do “uai” e da terminação única pra tudo: “im”. Argh!

A discussão da dupla era interminável e totalmente desprovida de argumentos. Repetiam incessantemente as mesmas coisas, num tom cada vez mais histérico e gargalhavam cada vez mais alto. O ônibus inteiro estava à beira da loucura quando chegamos ao destino, e eu só conseguia pensar que se entrasse no avião e estivesse há menos de dez poltronas de distância daqueles idiotas eu surtaria de vez, sairia gritando e ai da aeromoça que tentasse me segurar!

Sentada na sala de embarque, eu esperava que chamassem finalmente o vôo, desesperada pra chegar em casa. Embarcaríamos à meia noite. Quando finalmente anunciaram o embarque, eu quase chorei. Explico: o destino final era Beagá, com escala em Uberlândia – onde eu ficava – mas o aeroporto desta estava fechado por causa do mau tempo e era possível que não pudéssemos descer e tivéssemos que seguir direto e pegar outro avião pela manhã pra voltar.

Já com os nervos em pandarecos, investimos sobre o balcão da Gol e crivamos o atendente de perguntas, às quais ele respondeu com grosseria e pouco caso. Faltou dizer “foda-se, não é meu problema”. Sem alternativas, embarcamos assim mesmo e, dessa vez eu me juntei aos que rezavam – para que o aeroporto abrisse.

Felizmente, não estava sentada perto da dupla verborrágica, mas em compensação, tinha uma menininha maldita vestida de rosa no banco de trás que não parava de chutar a minha poltrona. Quase fiquei com escoliose de tanto tranco nas costas. Olhei algumas vezes pra trás, implorando pra mãe fazer alguma coisa, mas foi em vão. Sabe aquele tipo de mãe que faz cara de paisagem enquanto o filho inferniza a vida de alguém? Essa mesma. E quando resolveu tomar atitude foi ainda pior: “ô, minha filha, não faz isso!” – de um jeito mole, com cara de quem tava achando graça da pestinha. Fervendo de raiva, aproveitei um momento em que a omissa estava às voltas com o serviço de bordo, coloquei o rosto entre o espaço das poltronas e fiz uma careta medonha pra garotinha. Ela arregalou os olhinhos e não deu mais sinal de vida até o fim da viagem. Rá-rá. Ao menos uma vitória!

Sobrevoamos Uberlândia por alguns minutos e conseguimos autorização pra pousar, graças aos céus. Cambaleei escadinha abaixo e, por um momento, temi que a bagagem tivesse extraviado, seguindo o padrão do resto da viagem. Felizmente as malas estavam lá e meu pai também, esperando. Cheguei em casa morta. Caí na cama prometendo a mim mesma que ia começar a ler horóscopo.
Lívia Santana
Uberlândia - junho/2005
 
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