quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Baile de Formatura

Entrou no elevador cambaleando e tropeçou no carpete com o salto altíssimo. “Sapato idiota”. Olhou para os números do painel tentando se lembrar qual era mesmo o andar. A cabeça rodava, os ouvidos zuniam. Enquanto estreitava os olhos forçando a lembrança, viu os números ficarem borrados e se misturarem, piscando, azuis, pretos, cor de rosa. A pequena bolsa caiu de suas mãos, fazendo-a abaixar-se desajeitadamente para apanhá-la. Ao reerguer-se, teve a certeza de que o mundo inteiro estava se mexendo. A cabeça rodou ainda mais e se apoiou na parede do elevador, que ainda conservava a porta aberta, a luz iluminando o hall do prédio às escuras àquela hora da madrugada. Piscou repetidas vezes, tentando se orientar e, de repente, olhou em volta atônita, sem entender o porquê de estar ali parada. “Por que esse elevador não sobe?”. 

Sentiu-se enjoada e olhou em volta, procurando onde sentar-se. Nisso, encarou o espelho, onde a imagem de uma garota jovem, usando um vestido de cetim claro, cor de champanhe, tentava se equilibrar nos saltos pontiagudos. O cabelo escuro e farto, outrora penteado com capricho e elegância, pendia em mechas desalinhadas, dando um ar tresloucado à figura. Decadente, talvez fosse o termo mais exato. A maquiagem borrada produzia grandes manchas pretas sob os olhos injetados, o que destacava tristemente a palidez do rosto. O vestido – tão lindo! – estava manchado, reparou. Algo vermelho, vinho tinto talvez, maculava a saia longa, abaixo da altura do joelho esquerdo. Mas não bebera vinho. Ou será que sim? Não tinha certeza mais. Nunca bebera tanto na vida. Espantou-se de ter conseguido lembrar o endereço de casa pra dar ao táxi. 

Uma vertigem mais forte a fez encostar o corpo contra a parede e sentiu uma pontada de dor nas nádegas. Surpresa, fez uma careta e apalpou o lugar dolorido, constatando que algo mais estava errado: a calcinha havia sumido. Fechou os olhos, assaltada pela náusea, e procurou lembrar-se. Tinha vestido pra sair de casa, tinha certeza! Mas então... A cena veio em flashes confusos. O banheiro, o reservado, as mãos rudes que a apalpavam, comprimindo-a contra a parede gelada, arregaçando-lhe as saias com urgência. Não se lembrava de conhecer aquele rapaz. E nem os outros três que apareceram. 

Agora estava consciente das outras dores. Sentiu o estômago revoltar-se e vomitou no chão do elevador, tossindo e engasgando, as lágrimas quentes lavando o rosto. Depois de vomitar, sentiu-se um pouco mais lúcida e pôde divisar melhor os números no painel. Oitavo, lembrou-se. Apertou o botão, agora evitando a imagem da garota bêbada e amarfanhada no espelho. A porta abriu-se no andar indicado e tropeçou de novo no carpete ao sair. Exasperada, tirou os sapatos e seguiu descalça pelo corredor, tateando a chave na pequena bolsa. As lágrimas molhavam o decote a esta altura. A muito custo abriu a porta e precipitou-se em direção ao quarto, desesperada para se ver livre daquele vestido e daquela substância viscosa que escorria pelas coxas. Queria livrar-se do nojo, da tristeza. 

Trancou a porta e arrancou o vestido, jogando-o num canto feito lixo. Indo em direção ao banheiro, notou um bilhete afixado no espelho. Aproximando-se, leu: “Filha, tenho muito orgulho de você. Sempre soube que seria capaz de grandes feitos, só dependia e só depende de você. Lembre-se sempre disso: suas escolhas é que determinarão o que será feito da sua vida. Parabéns pela formatura. Tenho certeza de que o seu baile foi ótimo. Um beijo. Mamãe”. 


Sufocando um uivo de agonia, sentou-se no chão sob a água quente, soluçando arrasada. Grandes realizações. Grandes escolhas. Grande festa.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Apenas Mais Uma de Amor


Aqueles dois eram o que havia de mais diferente possível. Dois mundos absolutamente apartados, duas formas de viver totalmente diversas. E nem era o caso de serem opostos ou de se completarem. Nada de um ser a noite e o outro o dia, um o frio e o outro o calor. Não, nada disso, não perca tempo com devaneios românticos. Apenas eram díspares, nada tinham a ver um com o outro, nem motivo nenhum para se tornarem um par. E, a despeito de todas as probabilidades, foi o que aconteceu. Curiosidade, talvez. Nem eles mesmos sabiam o porquê de ficarem juntos, acho mesmo que não existia.

Ela era meio desenxabida, estava um pouco acima do peso e tinha constantes mudanças de humor. Ele era irascível, meio pomposo e um pouco preconceituoso. Ela era muito inteligente e tinha um lindo sorriso. Ele era muito culto e tinha um notável senso de humor. Ela trocava qualquer multidão por um bom livro ou filme. Ele sentia necessidade de barulho e badalação. Muito branca, ela não gostava de sol nem de programas "de gente saudável". Ele era atleta de fim de semana e adorava caminhar na praia. Ela, muito introspecta, ouvia a maior parte do tempo em que ele, falastrão, mal tomava o fôlego entre um assunto e outro.

Os dois formavam um casal estranho, tinham um caso de amor mal feito (mal escrito?), como se quem o idealizou tivesse se esquecido de adicionar a maioria dos ingredientes que conferem graça e encanto aos casos de amor. Mas, ainda assim, era um caso de amor e, no começo - como de costume - as coisas correram bastante bem.

O sexo parecia ótimo a julgar pelo volume dos gemidos e gritos. Ela gritava muito, sempre. Muitas vezes, mais pelo prazer de ouvir a si mesma do que pela performance do namorado. Além disso, tinha a sensação de que, se gritasse, já era um passo dado para o orgasmo, como se a ordem não fosse inversa. Ele ficava eufórico com os gritos e sentia-se cada vez mais potente. Então gozava e caía de lado, pegando no sono quase instantaneamente, com a sensação de dever cumprido.

Mesmo um pouco torto, havia excitação e enlevo no caso deles. Encantavam-se, menos um com o outro, do que com o inusitado da situação, com o desafio, com o desconhecido, é verdade, mas não deixavam de encantar-se. Nada sabiam um do outro e, por mais que conversassem, não conseguiam se comunicar de forma plena. Mas isso não foi problema durante muito tempo, já que tinham se idealizado mutuamente.

Amar um personagem é muito cômodo e lindo - este é o segredo do cinema. E estavam ambos mais interessados no que recebiam um do outro do que em qualquer coisa mais profunda.

Apenas era bom estar junto de alguém, ter com quem falar, para quem telefonar, ter alguém para dividir os acontecimentos do dia. Não importava se o outro não entendia muito bem o que escutava ou se não estava muito interessado, o mais importante era sentir que tinha alguém para ouvir. Por isso se amavam, por isso permaneciam juntos.

Passados quase quinhentos dias, no entanto, as coisas pareceram diferentes. Impossível saber quem mudara, se o relacionamento, se um dos dois, se ambos. O fato é que os pilares da realidade não eram mais fortes o suficiente para sustentar as fantasias, e até mesmo os personagens principiaram a derrocada. 

De repente, ela lhe pareceu intoleravelmente gorda e preguiçosa, e passou a recomendar-lhe todos os dias que fizesse exercícios. Ele tornou-se enfadonho e irritante aos olhos dela, que não suportava mais as piadinhas costumeiras de que sempre rira. Os gritos não eram mais eficazes para garantir o gozo, e a frustração foi aumentando, de ambas as partes.

Discutiam o tempo todo e com cada vez maior ferocidade, até que ela fez as malas e deixou um bilhete, avisando que tinha ido embora. Ele ficou furioso e tentou contatá-la durante dias, sem êxito. Não teve mais notícias dela e a raiva acabou esfriando. Sentiu um vazio e ficou triste por algum tempo, mas não muito. Só até conhecer uma outra moça que tinha o sorriso dela, mas que adorava a praia e também era atleta de fim de semana. Então...

Lívia Santana
Uberlândia - outubro/2005
Imagem: autor desconhecido.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Poder


Eu caminhava pela sala de aula de um lado para o outro, gesticulando e falando animadamente, quando tudo aconteceu. O tema era um dos meus preferidos, as relações de poder, e só agora percebo a ironia da situação. Era como se ela tivesse escolhido aquele momento em especial para se divertir às minhas custas. Nem sei dizer o porquê de tudo ter acontecido daquela forma, tendo bastado apenas um encontro de olhares. Virei-me do quadro negro para os alunos e dei de cara com ela me olhando de um jeito diferente. Diferente como, não sei dizer, mas perdi a ação por alguns segundos, o que não passou desapercebido a ela, que sorriu triunfante.

Era linda, isso era inegável. Mas sempre olhara para ela e vira uma menina atrevida, irreverente e inteligente, que crivava o professor de perguntas sagazes e tirava dez nas provas. Nunca tinha olhado tão fundo dentro daqueles olhos pretos traiçoeiros nem tinha visto-a sorrir como mulher. Fiquei atrapalhado. Senti o rosto queimar, enquanto ela ria da minha confusão. Saí para o abrasivo sol de quase meio dia, tomei água e procurei me recompor. Minutos depois voltava à sala, e ela adquirira de novo o ar inocente, fazendo-me pensar se o ocorrido não fora criação minha, fruto do calor. Mas, encerrada a aula, ela veio me procurar, abraçando o caderno contra os seios mal contidos sob a camiseta despojada. Cumprimentou-me pela aula e disse que voltaria à noite para tirar umas dúvidas. Assenti e fiquei vendo-a se afastar. De repente, até o leve balançar dos quadris ao caminhar me parecia provocação deliberada.

Procurei deixar o acontecimento de lado, não pensar nela durante o dia todo, mas foi em vão. Quando se aproximou a hora em que ela deveria chegar, engolia em seco. Ansiava pelo próximo movimento dela, e ao mesmo tempo temia-o como à danação. Olhava a todo o momento para a entrada, esperando avistá-la, e qual não foi a minha decepção quando as horas passaram e não chegou. Dei a última aula da noite e me preparava para ir para casa, no estacionamento, quando senti uma mão pequena pousar no meu braço. Levantei os olhos, e lá estava o mesmo sorriso que me tirara o sossego havia apenas algumas horas. E parecia outra vida, mal conseguia me lembrar dela de camiseta e rabo de cavalo, mordendo a ponta da caneta. Ainda mais a olhando agora, usando um vestido vermelho bem curto e os cabelos escuros escorridos sobre os ombros. Os olhos pareciam ainda mais pretos e perigosos, se é que era possível.

Disfarçando a surpresa, perguntei em tom de brincadeira: “Ué, você não tinha umas dúvidas para tirar?” Compenetrada, ela respondeu que sim, sem tirar os olhos dos meus. “E quais eram?” Ela passou as mãos pelos cabelos, que teimavam em cair sobre o rosto e disparou: “Quero saber, professor, se você quer me beijar”. De novo ela me deixou desconsertado e riu deliciada. Acho que a idéia de mexer com a minha cabeça a agradava mais do que a perspectiva de me beijar de verdade. Não sabia qual era a intenção dela, não sei mais o que pensei naquele momento, mas me vi puxando-a pelo braço e invadindo a boca vermelha com a língua. Encostei-a no carro e comprimi o corpo contra o dela, latejando dentro do jeans. Não pensava mais em nada, só a queria com furor, naquele minuto, não importava que alguém visse. Mas ela tinha outros planos. Desvencilhou-se, hábil, do meu abraço, recuou até uma distância segura e voltou a rir: “Eu perguntei se queria me beijar, professor, só isso”. E, fazendo uma careta travessa, foi embora, deixando-me ali, febril e incrédulo.

Durante toda a semana seguinte ela não compareceu às aulas, o que me deixou insatisfeito e irritado. Garota maldita, tirava a minha paz e me deixava assim, doido, esperando por ela. Mas a raiva passou toda quando recebi um bilhete dela, marcando um encontro à tarde. Cheguei ao local designado, o apartamento era de uma amiga, ela me disse depois. Abriu a porta e apenas me olhou com aqueles olhos de feitiço por muito tempo, para logo em seguida me puxar pelo braço pro sofá e não mostrar resquício de hesitação. Passei a tarde inteira dentro dela e acabei descobrindo que ela se instalou ainda mais fundo em mim. Estava apaixonado. O nosso relacionamento durou exatos oito meses, durante os quais estive completamente entregue, nas mãos dela. Adorava-a por horas a fio, não me cansava de olhar para ela, que era um mistério. Tinha rompantes de fúria e ria desbragadamente minutos depois. Num momento, ela zombava da minha paixão, dizia que eu parecia adolescente. E no momento seguinte me amava com ardência, deixando-me extenuado e feliz.

Lembro do fim como se tivesse acabado de sair daquele apartamento há poucos minutos, o mesmo da primeira vez. Passáramos a tarde entre os lençóis, como fazíamos sempre que podíamos. Deitado de lado, eu a olhava, conferindo cada detalhezinho daquele corpo adorado. A pequena cicatriz no ombro, a pinta sob o seio direito, o abdome reto e macio. Perdido em devaneios incautos, observei-a levantar-se da cama, lavar-se e vestir-se, sem olhar para mim. Penteava os longos cabelos lisos, quando a abracei por trás, pretendendo um carinho. Ela colocou as mãos sobre as minhas e olhou-me diretamente nos olhos através do espelho, como se me dissesse algo. Então eu vi. Na mão direita, uma aliança dourada brilhando absurdamente, ferindo-me os olhos e os sentimentos. Por um momento não compreendi. Ela virou-se para mim, tomou meu rosto entre as mãos e sussurrou: “Adeus”.

Lívia Santana.
Uberlândia - outubro/2005

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Império dos Sentidos


Um amigo recomendou-me outro dia que assistisse a Império dos Sentidos, que eu iria gostar. Sendo ele um cara inteligente e de bom gosto, fiquei curiosa - nunca tinha ouvido falar. Saí de casa dizendo que ia à locadora buscar este filme e a cara de espanto da minha mãe foi impagável, merecedora de pôster e moldura. Não entendi nada até chegar à locadora: a atendente me disse que o filme em questão estava na seção pornográfica. Fiquei desconsertada. Eu tinha ido locar um filme pornô sem saber. O meu amigo teria achado um filme pornô "a minha cara"? (não que eu não goste, mas isso é outra história). Bom, já estava ali, então não ia dar pra trás. Empinei o nariz e disse: "dá esse mesmo".

Em casa, fui entrando e anunciando: "Vou ver Império dos Sentidos, alguém me acompanha?" Veio todo mundo para a sala. Papai, mamãe, irmão, cachorro. Ah, então o filme era "indecente" mas ninguém ia perder, né? Só eu mesmo pra assistir um filme desses em família, arre! Soltei o filme. No princípio os adolescentes se cansaram: "Pó, filme de japonês?", mas logo em seguida arregalaram os olhos e ninguém falou mais nada. Aliás, minto. Volta e meia mamãe soltava um: "credo!".
Dirigido por Nagisa Oshima, Império dos Sentidos é ambientado em 1936, quando o Japão era marcado pelo conflito entre as culturas oriental e ocidental. Abe Sada, a personagem principal, emprega-se na casa de Kichizo e, entre as tarefas humildes, espiona as intimidades do patrão e da esposa durante algum tempo, até que ela mesma se torna amante de Kichizo.

Mas Sada está longe de ser a amante como estamos acostumados a pensar. Furtiva, relegada ao segundo plano, resignando-se em ser uma válvula de escape para o casamento do amante. Não. Ela se torna o centro da vida de Kichizo e nunca se envergonha do seu amor e de seu ato sexual, não se importando sequer em ser observada, em fazê-lo em público.

Sada é considerada a representante de uma era pré-ocidental e pré-cristã, em que, em lugar da virgindade, o principal valor é a experiência. Ela torna a prática sexual uma necessidade, através da qual busca saciedade e gozo incessantemente. Experimenta de tudo, faz questão de procurar o prazer em cada recôndito do corpo e da alma do amante e da sua própria.

Os amantes evocam práticas diversas para temperar o ato sexual como voyeurismo, pompoarismo, sadomasoquismo e até asfixia. Há cenas fantásticas e antológicas, como a do ovo - não vou contar, morram de curiosidade ou assistam ao filme! - ou a final, majestosa e chocante.

O filme significou um ato de libertação, uma mudança na vida de cada um dos envolvidos. Os atores fizeram sexo realmente em todas as cenas - a esposa do protagonista teve que aceitar a idéia do marido tendo relações com outra mulher ante uma câmera. Segundo o próprio diretor, a equipe técnica transformou-se em idólatra da erotômana Abe Sada, transformando a atmosfera das filmagens e da própria película, em ritualística, densa, solene. Assistir ao filme é presenciar o culto a uma entidade: o sexo.

Lívia Santana
Uberlândia - setembro/2005.
Imagem: pôster do filme.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Cartomante


“Dona Madalena. Joga búzios, tarô, lê a mão. Vê o futuro. Faz amarração para o amor”.

Ela hesitou, revirando o panfleto nas mãos suadas, cujas unhas roídas denunciavam a ansiedade. “E se...?” Custava a decidir-se. Nunca fora crédula, sempre resolvera os próprios problemas com certa facilidade. Sempre pensara que crendices eram para ignorantes ou desesperados, se não ambos. Joana não, era mulher culta, viajada, independente. Conseguia tudo o que desejava, acreditava em si mesma. E agora estava ali, segurando aquele panfleto amarfanhado entre os dedos inquietos, relutando em reconhecer-se impotente para o que quer que fosse. Cartomantes. Sim, isso era coisa para desesperados. Mas não era assim que se sentia? Já tinha tentado de tudo e nada surtira efeito!

Decidiu-se, iria ver a cartomante.

A sala de esperas era pouco iluminada e recendia a almíscar. Incenso. Pequenas almofadas vermelhas espalhavam-se por sobre as poltronas e pelo chão, um sino de vento em forma de luas e estrelas estava pendurado num canto. Havia mais duas clientes além dela. Uma moça jovem e loura com os olhos inchados de tanto chorar, usando um vestido rosa amarrotado, que a deixava mais pálida e infeliz. A outra beirava os quarenta anos, tinha os cabelos tingidos de uma cor indistinta, vestia-se com apuro e trazia nas mãos uma pomba branca amarrada com um lenço vermelho, quase esmagada tanta era a força com que era segurada.

Acabara de sentar-se e a cortina púrpura do canto abriu-se dando passagem à – supunha – Dona Madalena. Tinha cabelos cor de fogo revoltos e unhas compridas pintadas de vermelho sangue. Usava óculos roxos com as extremidades puxadas para cima e uma longa túnica da mesma cor dos óculos. O olhar era azul e amalucado, como desenho animado.

Teve impulsos de ir embora. Aquela figura inusitada parecia precisar mais de ajuda do que ela. Porém controlou-se, enquanto a mulher com a pomba saltava da cadeira, visivelmente excitada: “Dona Madalena, aqui está!” e estendeu o bicho na direção da anfitriã. “Muito bem! Há quanto tempo o animalzinho está amarrado?”, perguntou esta com um sorriso ainda mais maluco. “Seis horas”, foi a resposta. “Ah, então aguarde mais um pouco... assim que completar as dez, falaremos”. A mulher da pomba sentou-se, aparentando alegria.

“Ela vai esperar mais quatro horas?” – o impulso de ir embora veio mais forte que nunca.

A cartomante virou-se então para a mocinha loura. “Pronta, querida?” A menina encarou-a com os olhos tristes e negou com a cabeça, mal contendo as lágrimas que tornavam a cair.

“Então parece que é a sua vez”. – a vidente sorriu. Respirando fundo, Joana levantou-se e passou através da cortina púrpura. Lá dentro era abafado e o cheiro de almíscar era ainda mais forte. Sentou-se na cadeira indicada, em frente a uma mesinha redonda. Dona Madalena sentou-se em frente a ela e tomou a mão direita de Joana. Depois de alguns minutos enunciou: “O nome dele é Raul. Um Adônis. Arquiteto, bem vestido, discreto, educado, exímio dançarino. Solteiro, sem filhos, sem namorada. Conquista todas as mulheres que o cercam e não elege nenhuma. Um enigma. Certo?”.

Surpresa, Joana reconheceu que era verdade. Dona Madalena trocou a mão direita pela esquerda e tornou: “Entre tantos homens que a disputam, você se interessou pelo único que a repudia. Já usou diversos expedientes para envolvê-lo e nenhum obteve êxito. Já se ofereceu, já interpretou a moça frágil e a mulher dominadora, já se aproximou da mãe dele, já se enturmou com os amigos, já tentou até embebedá-lo. Nada. Ele continua indiferente. Está se consumindo pela paixão não correspondida. Sonha, fantasia, e sente que morreria para tê-lo”. E fitando-a com o olhar divertido, indagou: “Estou certa?”

Joana balançou a cabeça em sinal afirmativo, epantadíssima com o que acabara de ouvir. E como a cartomante mantivesse silêncio, inclinou-se para frente, ansiosa: “A senhora pode me ajudar?”

Dona Madalena alisou os cabelos cor de fogo, pensativa. “Posso, sim, menina, mas não da forma como pensa”. Joana franziu o cenho: “Como assim?”.

A cartomante tirou os óculos. Parecia outra pessoa, com expressão séria e espantosamente lúcida. “Acho que o melhor a fazer é esquecer isso, nenhum capricho vale tanto desgaste”. Joana apressou-se em falar, em defender a sua paixão com veemência, mas foi impedida pela outra. “Pense comigo, menina. Não acha que ele é perfeito demais?” Joana indignou-se: “A senhora está insinuando que ele é bom demais para mim?” A cartomante riu. “Não, querida. Estou dizendo simplesmente, que ele é bom demais. Pense. Bem vestido, sabe dançar, cozinhar, pinta, gosta de filmes de arte, de ópera e de se exercitar. O que podemos concluir disso?”.

Joana deixou cair o queixo. Não podia ser!

E, ante a expressão estarrecida da moça, Dona Madalena sorriu docemente. “Se o seu nome fosse João, querida, não haveria nada que a impedisse de conquistá-lo”.


Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A Rainha das Mulatas


Feche os olhos e imagine um amplo pátio calçado de pedras em noite de lua cheia. Imagine um grande número de pessoas reunidas em ambiente de alegria festiva. Violão e cavaquinho enchem o ar com acordes vibrantes de música crioula, alguns ensaiam tímidos passos de dança.O clima é o dos rituais pagãos de adoração e celebração pela vida. Então imagine uma mulher. Ela salta para o centro da roda do samba, atraindo todos os olhares com o movimento lasso dos quadris. Tem longos cabelos escuros e curvas generosas. Exala vitalidade e graça irresistíveis, dança como um animal furioso. Uma mestiça. Uma mulata cor de canela e pecado, de sorriso largo desconcertante, cheirando a cio com eflúvios de cumaru. Um feitiço feminino, sinuoso feito serpente, prometendo o paraíso. Requebrando frenética, ela hipnotiza os expectadores e os incita a delírios de gozo quase carnal, arrancando aplausos e gritos rubros, como se brotados do sangue. Sob as palmas cadenciadas, ela vai acelerando, acelerando, prestes a explodir. É capaz de atear fogo às veias dos homens e roubar-lhes a alma pelos olhos. Pode revolucionar o viver e o sentir apenas com um meneio do ventre liso e dourado. É capaz de destruir uma família e recompensar com a loucura. Um demônio, um veneno, que penetra por todos os buracos do corpo, que faz lânguido o mais diligente dos homens, que transforma o mais manso em assassino. Imaginou? Essa, meu amigo, é a Rita Baiana.

Rita Baiana é um dos personagens mais notáveis da literatura brasileira. Filha do realismo naturalista, é escrita com uma riqueza de detalhes visuais e sensoriais incríveis. Forte, apaixonada e politicamente incorreta, é absolutamente impossível não adorá-la. Sedutora e consciente de seus encantos, é maliciosa e faminta de vida, um diabo de saias. É sem dúvidas, a alma de O Cortiço, de Aluízio de Azevedo, embora não seja a protagonista. Ela não aparece desde o começo e nem está presente no fim, mas rouba a cena em sua aparição fulminante. Escrita em 1890, é uma mulher a frente de seu tempo. Ama a quem lhe aprouver, da forma que melhor lhe parecer. É deliciosamente livre e despida de amarras e preconceitos, é como a maioria de nós queria ser. É mulata decidida e generosa que enfrenta a vida de peito aberto, disposta a sofrer e gozar com a mesma intensidade. Fiel aos seus gostos e às suas paixões, a elas se entrega por inteiro.

É o símbolo da brasilidade quente que penetra na alma lusitana de Jerônimo, o português enamorado, e varre toda a nostalgia d'além mar que havia nele. Caído pela mulata, ele abandona mulher e filha, abraça a vida boêmia, contrai dívidas, perde a força moral e chega a ponto de matar um homem com um pedaço de pau. "Isso não é mulher, é uma desgraça", você provavelmente pensará. Mas para ele, o amor da Rita é insubstituível e justifica tudo. Nos braços dela, tudo adquire uma cor fulgurante e fantástica, não dando margem a lamentações, arrependimentos e nem dores. Ele a venera, satisfaz todos os caprichos, arde e morre por ela, se preciso for. Passa por todos os dissabores e tormentas, mas não lhe tirem a Rita, que sem ela não pode mais viver. Como vício destrutivo, como doença, ela é a seiva que o alimenta, a força que o impulsiona. Torna-se cativo por gosto e por vontade.

Rita Baiana é a personificação do melhor e do pior da mulher, com toda a magia e a ruína que lhes é peculiar. Mas não uma mulher comum, e sim uma dotada do orgulho e da beleza da raça negra da qual descende, aliada à ferocidade da mulher pobre que defende seu espaço e seu sustento. Ela transborda alegria e sensualidade, é corajosa, digna, guerreira - até as últimas instâncias, até à violência física - e essencialmente hedonista. Mas o mais marcante nessa mulher, assim como em toda a obra de Aluízio Azevedo, é que Rita Baiana é humana. Passa longe de qualquer heroína convencional da literatura brasileira, sempre tão cheia de Helenas (Machado de Assis) e Marílias (aquela de Dirceu), tão brancas, castas, atormentadas, frágeis, suspirantes. Ela não. Ela ri e se comove com o mesmo que todos nós. Tem seus momentos de egoísmo, de fúria, de mesquinharia, para logo em seguida abrir-se toda em generosidade ímpar. É amiga, companheira, carinhosa, brincalhona, devassa, inebriante. Mulher, personagem e símbolo inesquecíveis.

Lívia Santana
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: Thalma de Freitas, autor desconhecido.

Maçã


Apenas um olhar, é o bastante. Uma simples sugestão é faísca suficiente para deflagrar o fogo que consumirá todos os limites e barreiras. A situação mais inocente é capaz de desencadear pensamentos lúbricos e acontecimentos tórridos. A tentação é serpente insidiosa que ronda incessantemente, acompanhando cada passo da presa, à espreita do menor sinal de fraqueza. O desejo subjacente deixa o ar eletrizado e incita ao pecado. O proibido acena sinuoso com promessas de concupiscência morna e sedutora. O momento decisivo é imperceptível, a presa nunca estaca em considerações sobre ainda ser possível retroceder – até porque, a esta altura, daria qualquer coisa para finalmente transgredir. Não há como perceber o momento exato em que a guarda é baixada e é dado o primeiro passo em direção ao abismo. A ruína chega como picada de inseto venéfico: silenciosa, veloz e urticante, e apenas o princípio do sofrimento. Aparentemente inofensiva, não atrai maiores atenções, nem suscita maiores cuidados, enquanto instala a devastação. Lentamente toma conta de cada veia e cada pensamento, imperiosa, insaciável. Os sintomas são insopitáveis, enlouquecedores. O sono é acompanhado de suores profusos e delírios turbulentos, a vigília é dominada por intensa consumição. Corpo e mente ardem por algo pouco definido, mas imprescindível, que corrói o juízo e pulsa vertiginosamente no peito. Algo que coça, inflama, prolifera por toda parte. Agonia vibrante e entorpecente, fustigando a pele e a entranha, assanhando as fantasias. Uma dor gostosa, clara escura, doce amarga, quente fria. Um oxímoro incandescente e enregelante. Feitiço voluptuoso que aprisiona o pecador e o afunda em embriaguez viscosa e salaz. Dura momentos eternos e inebriantes, mas, o que é quase paradisíaco e quase infernal, se converte em desgraça completa quando a transgressão é revelada. Por mais que o desafio tenha sido suculento e tenha provocado as mais sublimes sensações, a perdição é o destino daqueles que mordem a maçã.


Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Prometeu


Não tivesse eu a consciência incansável a acusar-me sem trégua e nenhum exílio seria tão terrível, nenhuma sentença severa em demasia. Acorrenta-me mais o arrependimento pungente do que os grilhões que me prendem à pedra nua. Desnecessários, aliás, pois meu cárcere eu trago edificado no coração, não há rota de fuga possível.

Certamente são graves os meus crimes. Piores ainda por atingirem o ser mais digno de amor e honradez em que já pus os olhos. Razão teria em chamar-me monstro, o mal que lhe causei ainda se estampa na face. Recordo a vileza com que lhe traí os sentimentos e a confiança e sinto arrepios.
Abri as feridas mais profundas, provoquei dores atrozes. Conspurquei-lhe corpo e alma, envenenei-lhe os sonhos e a língua, destruí as certezas e referências. Fui a causa do vinco de amargura que lhe anuvia os olhos, do ceticismo cinza e estéril que lhe turva as palavras e os sentidos.

Revejo incessantemente suas lágrimas abundantes, transbordando vergonha e mágoa. Presenciei sua agonia e o choque foi suficiente para despertar-me do torpe torpor em que mergulhara. Atingiu-me desespero fulminante, não entendia como pudera cair tanto. Sufoquei de culpa, cambaleei ante a força do amor que me invadiu. Mas então era muito tarde, não havia mais volta.

A pena que me coube foi o degredo e, no cimo da montanha, expio meus pecados. Meu libelo, repetido continuamente pelo meu algoz, ecoa em meus ouvidos, inflingindo-me tortura impiedosa, causticante. Apenas experimento alguns momentos de alívio quando o abutre – bendito – vem bicar-me o fígado, todos os dias.

Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005.
Imagem: autor desconhecido.

Na Chuva


Durante toda a tarde o vento rodopiou as folhas e as saias, anunciando chuva e, finalmente, na última hora de sol, ela chegou. Bendita. Sensação de liberdade e prazer indescritíveis. Como se energia liquefeita penetrasse em meus poros e iluminasse-me a entranha, sacudindo a vida em minhas veias. A forma perfeita de lavar a mente e o espírito, ficar leve como as nuvens depois que precipitam. Sob as gotas frias, virei criança de novo. O rosto afogueado, corri pela rua, chapinhei as poças, dancei e rodei, embalada pelo som do meu próprio riso infantil.

Então atentei prum elemento dissonante: eu tinha platéia. Um homem bem mais velho – eu tinha dezesseis – estava parado a alguns passos de mim, indiferente à chuva que ensopava suas roupas claras, olhando-me fixamente. Parecia confuso, chocado até. Sem saber por quê e sem me lembrar que também eu estava encharcada, proporcionando uma vista privilegiada através do meu vestido leve, me aproximei.

O olhar escuro, mesmo ligeiramente surpreso, ardia e hipnotizava, era impossível me afastar. Era alto, forte, tinha a pele morena e os cabelos pretos, entremeados de poucos fios prateados. Não chegava a ser bonito, mas era atraente. Ficamos nos encarando por alguns minutos, dissociados da lógica, até que ele fugiu, correndo sob a chuva, antes que eu pudesse esboçar qualquer gesto para detê-lo.

Nunca o tinha visto, não sabia nada sobre ele, sequer tinha ouvido-lhe a voz, e quisera detê-lo. Por quê? E por que ele tinha fugido? No fundo, era o que mais me intrigava. Sabia que o arrepio que tinha sentido na nuca nada tinha havido com a chuva. Aquilo tumultuou a minha noite, fazendo-me rolar na cama, insone e ansiosa. A sensação de ser observada, devassada pela curiosidade de um espectador nebuloso, permanecia e impedia-me de conciliar o sono. Além disso, o olhar do desconhecido continuava a me perseguir, chamando-me.

Passei os dias que se seguiram vasculhando a vizinhança tentando revê-lo, inutilmente. Ele tinha sumido, como se tivesse se escondido. Passei a esperar ainda mais ansiosamente que chovesse, na esperança dele aparecer e, realmente, o vi mais algumas vezes, sempre em dias de chuva e sempre fugindo de mim quando eu tentava me aproximar.

Aquilo já era idéia fixa, eu tinha que encontrá-lo, saber quem era, dar vazão à impressão tão forte que me causava. Estava obcecada por um estranho e senti crescer um desejo absurdo por ele. Meus sonhos crepitavam lascivos, sentia na pele o toque forte das mãos dele. Esfregava-me contra os lençóis tentando aplacar a sede através de gozo solitário, a agonia quase insuportável.

Dias depois, o sol já tinha se posto e o céu ia gradativamente assumindo um azul mais escuro, quando senti as primeiras gotas. Tinha me sentado na calçada, sentindo a chuva sobre a pele trêmula, imaginando se ele apareceria, quando o vi a alguns metros, olhando daquele jeito intenso, quase dolorido.

Em vez de tentar aproximar-me, despi o vestido molhado e encarei-o, desafiando-o a ser capaz de ir embora de novo. Hesitante, ele veio até mim e ajoelhou-se no chão aos meus pés, o olhar ainda atormentado. “Você é só uma menina”. Então era isso. Eu ri e arrematei: “Você não sabe de nada”. Coloquei a mão dele sobre o meu seio pequeno e senti a resistência dele ir por terra. Aquela disputa sob a chuva eu tinha vencido.

Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.

Encenação (ou Pedestal)


É chegada a hora de encerrarmos a temporada, o público demonstra sinais inequívocos de enfado, toda a companhia está extenuada. A platéia já se tornou tão exígua que os parcos aplausos ressoam quase zombeteiros pelo vazio da penumbra...

(suspiro... ele esfrega os dedos pelo cabelo, num gesto confuso e furioso... abre um novo arquivo e começa a digitar febrilmente)

A angústia que me assola é tanta que nada consigo escrever além de textos melancólicos e desesperançados. Sinto uma sombra escura e pesada envolvendo-me o coração, que já não sabe como é não estar oprimido. Ando pela casa, sorumbático, suspirando de saudades, tentando me esconder dos olhos grandes, escuros e tristes dela.Ela. Ah, como eu a queria de volta! Daquele jeito doce que era, e que me emocionava por vezes quase até às lágrimas. O sorriso tão claro e franco, o olhar exultante que me dirigia toda vez que eu chegava, o encaixe perfeito do seu corpo frágil em meus braços. Ela era como um pássaro canoro, enchendo de vida e alegria a casa e a vida. Tudo parecia perfeito, eterno, eu nunca tinha sido tão feliz. E agora isso.

Quem porventura lesse estas linhas pensaria estar diante do desabafo de um viúvo ou talvez de um amante abandonado. Sinto-me um pouco como ambos e, no entanto, ela está bem ali, ao alcance de minhas mãos. E não sinto a menor vontade de tocá-la. Na verdade, não gosto mais dela. A cada dia gosto menos, se é que é possível, e sinto o enlevo escapar-me por entre os dedos lentamente. Eu a amo - oh, sim, amo muito! - por tudo o que vivemos juntos, tudo o que já fomos, o que já tivemos. E não temos mais. Já não consigo sentir ternura pelo som da sua voz ou da sua risada, como antes. Às vezes sinto mesmo indiferença. Seus olhares carinhosos já não significam nada, não são capazes de me tocar, e qualquer declaração de natureza amorosa resvala por mim sem produzir nenhum efeito.

Não que haja repulsa - ainda - apenas não me importo, a presença dela já não faz diferença. E ela sente isso. Como não sentiria, se sempre demonstrei paixão e a tratei com todos os mimos e agora, quando me dirijo a ela é para censurar-lhe por algo? Ela sente e vejo que não sabe como agir. Alterna entre crises de ressentimento e tentativas vãs de tornar ao que éramos antes. Está perdida, e nem mesmo me apiedo dela. Acuada, se fecha cada vez mais, o que tem o condão de me irritar e entristecer. Como é duro presenciar o fim gradual de tudo que era tão belo e incrível, como é terrível me sentir impotente! É tão estranho gostar menos de alguém à medida que se conhece... Quanto mais familiar ela me parece, mais me desagrada. A forma com que ela encara o mundo não se ajusta à minha, sou obrigado a reconhecer. Não é nem de longe a companheira que eu gostaria e não entende o que tento lhe dizer. Interpreta sempre da pior maneira, como se eu a estivesse atacando e, por isso, vive se defendendo. Tenho-me sentido numa trincheira. Basta que eu diga algo que possa soar ofensivo ou que a contrarie para que a batalha seja desencadeada.

Como é possível gostar menos a cada dia da pessoa que se ama? O conhecimento está matando meu amor? Por quê? Aquela a quem realmente amo, por quem me apaixonei, seria apenas uma imagem, uma idealização? Teria ela desempenhado um papel ao nos conhecermos? Teria me enganado? Ou eu mesmo o fiz? Procurei alguém que fosse aquilo que eu queria, que preenchesse as minhas expectativas? Estarei me sentindo frustrado agora por perceber as limitações da atriz que escalei para o papel? Quis esse tempo todo que ela fosse alguém que não é na verdade?

Mas só queria que ela fosse como antes! Tão linda, meiga, esperta, desejável e dócil!...Por que tinha também que ser egoísta, teimosa, suscetível e impiedosa com os meus defeitos? Por que ela tinha que me avaliar e me reprovar? Por que não podia continuar a me olhar daquele jeito apaixonado? Era tudo tão bom antes! Ela só precisava entender que tinha que se amoldar a mim para nos encaixarmos, para vivermos em harmonia! Como foi que a paixão se metamorfoseou em constrangimento? Por que agora o olhar dela é sempre tão triste? Onde foi que tudo ruiu? (...) Não sei. Fico pensando se há o que salvar ou se não passou de ilusão que durou tempo demais. Por que temos essa relutância em admitir o fracasso? Talvez seja o pânico de ver o tempo passar, de me sentir envelhecer e os relacionamentos falidos irem-se sucedendo inexoravelmente. Talvez a sensação de que nunca na verdade dará certo, que é impossível, estou fadado a ficar só. Que é tudo inútil e o melhor é desistir.

(suspiro)

A verdade é esta, não gosto mais dela, da pessoa que se tornou - ou que sempre foi e eu nunca enxerguei. Por que sempre temos que nos perder de quem amamos? Meu falecido pai, aquele amigo de infância que era eterno, cada mulher que já amei. Todos perdidos, inalcançáveis. Acho que estou até me acostumando. Ela me disse outro dia que a minha frieza a assusta, e acho que estou mesmo frio. Distante, indiferente, cético. Sei que ela julga impossível que seja obra de alguma rival - tenho mesmo que admirar a segurança dela - mas de certa forma está enganada. Realmente uma outra mulher ocupa o meu pensamento: aquela que ela costumava ser. É esta que tem deixado perdido o meu olhar, que tem povoado os meus sonhos. Fico me perguntando se ela existiu mesmo ou se foi criação minha. E em alguns momentos chego a ter a certeza de que sim, eu a criei. Era perfeita demais.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
Imagem: autor desconhecido
 
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