segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Na Chuva


Durante toda a tarde o vento rodopiou as folhas e as saias, anunciando chuva e, finalmente, na última hora de sol, ela chegou. Bendita. Sensação de liberdade e prazer indescritíveis. Como se energia liquefeita penetrasse em meus poros e iluminasse-me a entranha, sacudindo a vida em minhas veias. A forma perfeita de lavar a mente e o espírito, ficar leve como as nuvens depois que precipitam. Sob as gotas frias, virei criança de novo. O rosto afogueado, corri pela rua, chapinhei as poças, dancei e rodei, embalada pelo som do meu próprio riso infantil.

Então atentei prum elemento dissonante: eu tinha platéia. Um homem bem mais velho – eu tinha dezesseis – estava parado a alguns passos de mim, indiferente à chuva que ensopava suas roupas claras, olhando-me fixamente. Parecia confuso, chocado até. Sem saber por quê e sem me lembrar que também eu estava encharcada, proporcionando uma vista privilegiada através do meu vestido leve, me aproximei.

O olhar escuro, mesmo ligeiramente surpreso, ardia e hipnotizava, era impossível me afastar. Era alto, forte, tinha a pele morena e os cabelos pretos, entremeados de poucos fios prateados. Não chegava a ser bonito, mas era atraente. Ficamos nos encarando por alguns minutos, dissociados da lógica, até que ele fugiu, correndo sob a chuva, antes que eu pudesse esboçar qualquer gesto para detê-lo.

Nunca o tinha visto, não sabia nada sobre ele, sequer tinha ouvido-lhe a voz, e quisera detê-lo. Por quê? E por que ele tinha fugido? No fundo, era o que mais me intrigava. Sabia que o arrepio que tinha sentido na nuca nada tinha havido com a chuva. Aquilo tumultuou a minha noite, fazendo-me rolar na cama, insone e ansiosa. A sensação de ser observada, devassada pela curiosidade de um espectador nebuloso, permanecia e impedia-me de conciliar o sono. Além disso, o olhar do desconhecido continuava a me perseguir, chamando-me.

Passei os dias que se seguiram vasculhando a vizinhança tentando revê-lo, inutilmente. Ele tinha sumido, como se tivesse se escondido. Passei a esperar ainda mais ansiosamente que chovesse, na esperança dele aparecer e, realmente, o vi mais algumas vezes, sempre em dias de chuva e sempre fugindo de mim quando eu tentava me aproximar.

Aquilo já era idéia fixa, eu tinha que encontrá-lo, saber quem era, dar vazão à impressão tão forte que me causava. Estava obcecada por um estranho e senti crescer um desejo absurdo por ele. Meus sonhos crepitavam lascivos, sentia na pele o toque forte das mãos dele. Esfregava-me contra os lençóis tentando aplacar a sede através de gozo solitário, a agonia quase insuportável.

Dias depois, o sol já tinha se posto e o céu ia gradativamente assumindo um azul mais escuro, quando senti as primeiras gotas. Tinha me sentado na calçada, sentindo a chuva sobre a pele trêmula, imaginando se ele apareceria, quando o vi a alguns metros, olhando daquele jeito intenso, quase dolorido.

Em vez de tentar aproximar-me, despi o vestido molhado e encarei-o, desafiando-o a ser capaz de ir embora de novo. Hesitante, ele veio até mim e ajoelhou-se no chão aos meus pés, o olhar ainda atormentado. “Você é só uma menina”. Então era isso. Eu ri e arrematei: “Você não sabe de nada”. Coloquei a mão dele sobre o meu seio pequeno e senti a resistência dele ir por terra. Aquela disputa sob a chuva eu tinha vencido.

Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.

Nenhum comentário:

 
BlogBlogs.Com.Br