sexta-feira, 23 de maio de 2008

Enquanto Você Dormia


Três da madrugada e Rita se encolhia contra a cabeceira da cama, o quarto iluminado apenas pelo reflexo da televisão ligada. Os olhos ardiam, a cabeça pesava, mas continuava segurando o controle remoto, mudando distraidamente de canal, sem procurar por nada na verdade. O ruído provocado pelo ronco do Chico, deitado ao lado dormindo com a boca aberta, a impedia de pegar no sono e, a cada segundo que passava, a enchia de uma angústia que só aumentava.

Mudou de canal e a televisão mostrou um palestrante de voz monótona, falando sobre trabalho. “O trabalho é que impulsiona o homem. Investimentos, negociações, desafios, competições, lucro, realizações. O homem foi criado para trabalhar e nessa tarefa ele se esmera, se empenha, se esgota até”. Rita riu consigo mesma, com amargura. “É, o trabalho é que move o homem. Mas o trabalho também move a mulher – geralmente na direção de um homem que trabalhe menos que o dela”. Olhou para Chico que roncava cada vez mais alto, exausto do dia de trabalho e teve vontade de chorar.

A vida deles era um inferno. Ele estava tão concentrado em trabalhar, crescer, ter sucesso, ser o melhor, que se tornava cada vez mais ausente e aéreo. Frio, quase indiferente. O pensamento sempre longe, tramando a próxima ação, prevendo reações, planejando. Enquanto ela, Rita, cansada de procurar pelos olhos fugidios do marido, se deitava e assistia à televisão durante horas a fio, incapaz de adormecer, sentindo-se absurdamente vazia. Frustrada, ferida por ser relegada a segundo plano.

O ressentimento pelo tom de voz impessoal, pelo desinteresse por qualquer outro assunto que não fosse o trabalho crescia. Ela se aborrecia ouvindo-o descrever duas, três, cinco vezes o mesmo problema, o mesmo empecilho, a mesma transação. E quando tentava conversar, pedir, demonstrar alguma contrariedade com a ladainha, ele se irritava, acusando-a de falta de companheirismo.

Rita se perguntava, cada vez com mais freqüência, o que é mesmo que estava fazendo ali.

Não conseguia reprimir a sensação de ser inútil, a não ser para os momentos em que, tomado de lubricidade, Chico a procurava entre os lençóis, não se importando se estava dormindo ou se estava disposta. Nesses momentos é que se sentia mais inútil e idiota, ele não a desejava, apenas desaguava nela suas necessidades. Sentia-se prestes a enlouquecer.

Levantou-se da cama e caminhou em direção ao banheiro, arrastando os chinelos, sentindo-se tão arrasada que sequer conseguia endireitar os ombros. Parecia que o peso do mundo vergava-lhe as costas. Acendeu a luz, tirou a roupa e se olhou no espelho. Era jovem ainda, nem atingira os quarenta e vinha se sentindo lixo. Os olhos estavam fundos, o rosto abatido. Mas o corpo era bonito, a cor dos cabelos castanhos era viva, natural, os lábios eram cheios e rosados.

Tocou a própria face, lembrando como os homens costumavam achá-la atraente, o quanto já tinha sido feliz, bonita, amada. E agora? Será que ainda podia?

Pensou no rapaz que a abordara no supermercado naquela mesma tarde. Tão jovem, e tão galanteador. Estaria ele sendo sincero? Outro homem poderia querê-la de verdade, dar-lhe valor? Ah, como desejava inspirar o desejo de um homem novamente, como doía a indiferença do marido!

Suspirando, entrou sob a água mais quente que podia suportar, como se procurasse lavar de si toda a dor, a tristeza, a confusão que vinha sentindo. Esfregou-se vigorosamente, sentiu os músculos relaxarem.

Trinta minutos depois, saía de dentro do boxe para o banheiro enfumaçado sentindo-se bastante melhor. Limpou o embaçado do espelho com a mão molhada, e surpreendeu-se com a própria imagem. Os olhos, antes embaciados, agora brilhavam e as faces estavam coradas. Ante o inesperado, riu satisfeita para si mesma no espelho, notando mais outra coisa: o rosto ainda fazia covinhas quando sorria!

Sentindo-se leve como há tempos não sentia, Rita enxugou-se e passou ao quarto, parando diante do marido, que agora babava pelo canto da boca, espalhado na cama toda.

Repentinamente, a mágoa que vinha alimentando contra o Chico se dissipou e deu lugar a uma intensa sensação de pena, mesclada a alívio. Ele era tão infeliz e nem se dava conta! Era sozinho, não tinha amigos, nem filhos, nem prazeres. Será que ainda perceberia isso? Ao mesmo tempo, teve a certeza de que não amava mais aquele homem, não tinha porque continuar ao lado dele. Sentiu-se livre, pronta para viver outra vez.

Abriu o armário decidida e jogou algumas roupas dentro de uma sacola. Dormiria num hotel pelo resto da madrugada – e boa parte da manhã – e, no dia seguinte, viria pegar o resto de suas coisas. Escreveu um bilhete pra que ele não se preocupasse, embora ela duvidasse disso. Pobre Chico. Trabalhava tanto que não tinha nada. E acabara de perder a mulher.

Lívia Santana.
Uberlândia - 07/2005
Imagem: autor desconhecido.

Amigas


Marina é minha melhor amiga, conheço-a a vida inteira. Tenho a sensação de que não tenho lembranças em que ela não esteja. Juntas, crescemos, descobrimos o mundo e formamos quem somos. Meninas, rimos quando rasguei a calça no colégio e mulheres, choramos quando o pai dela morreu. Sabemos tudo uma sobre a outra, guardamos os segredos. Nunca nos afastamos, mesmo quando se tornou namorada do Fábio. É uma mulher linda. Seu riso contagia, sua força arrasta. E quando se sente frágil, vem dormir em casa. Nesses dias ela se deita na cama ao lado da minha, usando pijama de bichinhos e conversamos até tarde, no escuro. Eu a amo muito. Hoje, brigou com o Fábio e estava tão calada que achei que tivesse dormido. Até que senti seu corpo nu, quente e suave, estender-se ao lado do meu. Prendi a respiração e ela me abraçou, nada fraternal. Num segundo infindável pensei em toda a nossa história, antes de me virar pra ela e corresponder ao abraço, abrindo a boca pra receber o beijo lento e molhado.


Lívia Santana.
Uberlândia - 07/2005
Imagem: cena do filme Lost and Delirious.

Tea For Two


Esta tarde bateram à minha porta devagarinho. Um. Dois. Três. Era Tristeza, uma velha amiga. Talvez amiga seja a palavra errada, já que nem gosto muito dela. Mas quando alguém o conhece há tanto tempo e tão bem quanto ela, é difícil chamá-lo por outro nome que não amigo, ainda que impróprio. Acostumei-me à presença dela, é a verdade. Fica sendo amiga, pois. Bateu à porta e convidei-a a tomar chá. Sentamo-nos e houve um silêncio prolongado. Sem constrangimento, sem desconforto. Apenas intimidade, entendimento. Ela sabia que eu não queria falar. Somente fez-me companhia. A noite foi caindo e ela acendeu os abajoures. Sentia-se em casa, tão assídua era naquela sala. Escolheu um disco de blues azul e ofereceu-me o colo, sem dizer palavra. Deixei-a acariciar-me os cabelos por longas horas, até que bateram novamente à porta. Tristeza beijou-me em despedida e abriu a porta, dando passagem a Solidão, meu fiel companheiro noturno, com quem divido a minha insônia.

Lívia Santana.
Uberlândia - 07/2005
Imagem: Bruno Dias.

Possessão


Aproximou-se da cama, onde ela dormia serenamente. Espantou-o que ela parecesse tão frágil, encolhida como criança. Os longos cabelos escuros espalhavam-se, desordenados, sobre o travesseiro alvo, a pele morena macia convidava à carícia mais doce. Enterneceu-se. Sentia-se tentado a acordá-la suavemente quando um movimento, acompanhado de um gemido abafado, revelou o busto nu. O som gutural e a visão dos mamilos escuros dissiparam o transe e lembrou-o de que ela nada tinha de angelical, na verdade. Era, antes, a personificação dos seus demônios. Rememorou a risada e os movimentos devassos e sentiu-se inflamado. Acercando-se da cama, cravou os dentes com força no seio, arrancando-lhe um grito de surpresa, a qual durou pouco. Desperta, ela sorriu daquele jeito faminto e lúbrico, encarando-o, convidativa. Ferozes, lançaram-se ao embate.


Lívia Santana.
Uberlândia - 06/2005.
Imagem: Pedro Gomes.

Leo e Bia


Leo era agregado da família da tia, irmã da mãe. A esta, raramente via – vivia mudando, de parceiro e de cidade. Não conhecera o pai, cuja identidade a mãe não tinha certeza. Era um incômodo: recebia casa, comida e má vontade, ocupava um sofá-cama no quartinho dos fundos. O trabalho como balconista rendia-lhe exaustão e salário mínimo, a vida era árida. Mas Leo era infeliz, não resignado. Entrou prum curso noturno e, a despeito das probabilidades, passou na prova do vestibular. Escolheu o curso levando em conta dois fatores: a dificuldade – o que excluiu a Medicina – e o status da profissão, o que tornou o Direito a opção mais indicada. Estava então num mundo novo, absurdamente vistoso e cheio de possibilidades, para quem tivesse visão. Leo sabia a quem deveria agradar e nisso se empenhou. Tornou-se parasita charmoso, desfrutando largamente dos privilégios daqueles que elegera para amigos. Gastava o salário em roupas e freqüentava os melhores lugares – sempre por conta de algum amigo pródigo. Arrumou novo emprego num escritório renomado, por indicação de um herdeiro. A boa aparência e o carisma o tornaram popular com o sexo feminino, e ele cercou-se de muitos exemplares. Finalmente, era tratado como merecia. Vendo-o, julgavam tratar-se de um deles, equívoco que ele fazia questão de estimular.


Bia tinha biótipo de boneca. Olhos grandes e muito azuis, tez muito branca e suave, longos e brilhantes cabelos louros. Longilínea. Delgada. Quase etérea. A princesa dos contos de fadas, se princesas fossem depressivas e tivessem um grave problema de auto-estima. Filha de pais separados, detestava a madrasta e tinha aversão aos filhos do padrasto, razão pela qual os pais montaram-lhe um apartamento na cidade vizinha. Deram-lhe um carro, polpuda mesada e autonomia. Pagavam as contas. A vida era mansa. Raramente ligava para a mãe. Acostumou-se à solidão, embora a odiasse. Talvez para preencher o vazio, envolvia-se incessantemente em problemas. Seus relacionamentos sempre resultavam em lágrimas, como se tivesse mórbido prazer em precisar de drogas para dormir. Entre uma decepção e outra, foi para universidade. Não muito afeita a esforços, escolheu um curso que não exigisse grandes aptidões e a tornasse profissional – o Direito. Foi alvo de grande assédio desde o princípio: aparentava ser o tipo de garota ideal a ser exibida, como um troféu. Entretanto, Bia tinha fome de grandes amores e pendor irresistível a grandes dramas. Queria mistérios, rituais de conquista, obstáculos a serem superados. Algo que a frivolidade dos rapazes não conseguia alcançar e, portanto, nenhum obteve êxito.


Leo e Bia colidiram no campus numa noite fria dessas. Delicada, ela teve um hematoma. Ele a cobriu de atenções – machucara um anjo! Encantaram-se. Ela era o luxo perfeito para arrematar a vida dourada que ele tinha idealizado. Ele trazia nos olhos todo o mistério e a intensidade de que ela precisava. Belos, formaram vistoso casal. O sentimento, arrebatador no princípio, cresceu exponencialmente com o passar dos meses. A paixão era óbvia, até incomodava. Os grandes olhos azuis dela sorriam ao vê-lo, os escuros dele estreitavam-se ainda mais, ardentes. Adotaram como sua a música homônima, considerando um prelúdio do “felizes para sempre”. Pertenciam-se, era um sinal. Criaram pra si um mundo à parte. Ela dedicou-se a ele e afastou-se das amigas, as quais admiraram a entrega e velavam pela felicidade do par. Ele ficou orgulhoso de tê-la consigo – o que nenhum dos amigos conseguira – e procurou conservar apenas os companheiros de farra mais influentes, que envenenavam sutilmente a relação. Independente do que achassem do casal, os colegas habituaram-se a vê-los sempre juntos. Tanto, que não deixaram de notar quando Leo apareceu sozinho por seguidas vezes. Ele não encorajou perguntas, ninguém insistiu. Ao cabo de uma semana, Bia voltou ao braço do namorado, sorridente. Tivera uma gripe, só isso. Estava tudo bem, o incidente foi esquecido. Mas o sorriso de Bia deixara os olhos, mal chegava aos lábios. Leo estava inquieto, suscetível, ciumento. Impetuoso, parecia vigiá-la. Ela empregava toda a energia em ser natural e garantia que tudo corria bem. Tornou-se mais esquiva e ele foi visto de novo em companhia dos amigos dissolutos. Discutiram em público pela primeira vez. Mesmo visivelmente apaixonados, chegara o tempo do drama. Bia empalidecia e Leo assombreava-se. As brigas em público sucediam-se, cada vez mais terríveis, seguidas de tórridas reconciliações. Ninguém se surpreendia mais com a tormenta quando Bia teve outro hematoma, este no pulso. Outro tombo, nada sério, ninguém precisava se preocupar. Ela repeliu aproximações e negou, veemente, que tivesse algum problema. Mas foi internada em seguida e os ferimentos não deixavam margens a enganos. Surda a qualquer argumento, Bia asseverou que a culpa era dela. Não era capaz de entender o quanto Leo a amava e ele apenas mostrava o quanto ela o magoava. Ela tinha que aprender. Afinal, estavam destinados. Leo e Bia tinham que saber se amar. O que ela não considerou é que o primeiro sinal do destino não tinha sido a música e sim o hematoma. Essa consideração coube à mãe, inconsolável quando, semanas depois, o caixão foi velado com a tampa cerrada.


Lívia Santana.
Uberlândia - 06/2005
Imagem: autor desconhecido.

Primeiro Estágio


Ela abriu a porta e me atacou com um “bom dia”, pronunciado cuidadosamente pela boca do tamanho do mundo, já começando a me mastigar com os dentes perfeitos. Traiçoeira. Nem pude me defender. Fiquei ofuscado como se uma parcela do sol radiante que brilhava lá fora estivesse dentro dela. Nada mais excitante numa mulher do que a maturidade. Nada mais embriagante que o olhar seguro, cônscio do poder e da sensualidade que possui. Deslumbrei-me com o sorriso lento e deliberado de quem sabe o que quer e como fazer. Admirei, assombrado, a consistência das curvas e das palavras. Uma mulher completa, na medida. Sem as incertezas e frivolidades das meninas. Serena e excitante. Feminina, inteligente, determinada. Linda. Nem me lembro direito o que disse a ela na entrevista, o fato é que acabei contratado. Tenho a sensação de que percebeu logo o fascínio que exerceu sobre mim e que este foi um dos fatores pra ter me querido como estagiário. Ela me dá ordens o dia todo, de um jeito todo dela. Sempre agradável, sempre irresistível. Como se soubesse que basta me sorrir com os olhos promissores prá conseguir o que quiser. Diariamente observo-a se mover pelo escritório, elegante. Ela tem pernas longas, flexíveis, torneadas, sempre ocultas por calças bem cortadas. Usa saltos muito altos e finos, prato cheio pra qualquer fetichista. Nunca veste saias, como se soubesse que talvez eu não me contivesse e acabasse levando a cabo minha fantasia diária: atirá-la sobre a minha mesa e afundar a boca na curva suave do seu pescoço. Percebo que ela se diverte com os meus olhares e se compraz com o meu desejo, mas conserva criterioso distanciamento. E acho que a entendo. Não precisamos de vencedor nesse jogo, todo nosso. O que nos estimula é o embate diário, a possibilidade constante. É esta dança que nos torna cúmplices, que alimenta doce expectativa. Essa magia é que me mantém cativo, que dá um colorido único aos meus devaneios. Por hora, este estágio me basta e não o troco por nenhum outro.


Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005

Doentiamente


Teresa pode ser descrita por advérbios: imensamente solitária, pateticamente carente, visceralmente insegura, dolorosamente instável. Não é muito afetada pela realidade e pelas pessoas que vivem nela: enxerga o mundo de um jeito bem particular. Consome altas doses de nicotina – o melhor remédio pras freqüentes crises de tristeza paranóica. Tem habilidades medíocres, razão pela qual trabalha muito e arduamente. Os olhos verdes são muito claros e os cabelos artificialmente louros. O corpo é delicado e excessivamente bronzeado. Bonita e atraente, motivos de trazer o coração repleto de amargura e cicatrizes mal curadas. Seu grande objeto de afeição é Alice. A única capaz de ouvi-la e entendê-la. Capaz de aconselhar e conversar com ela durante horas. Capaz de dividir a casa e fazer-lhe companhia. Teresa admira muito Alice. Não passa um dia em que não queira ser como ela. Tão forte, serena, graciosa. Tão perspicaz e calculista. Tão independente, manipuladora e egoísta. Alice é a melhor amiga de Teresa – é o que esta declara devotadamente aos quatro cantos. A convivência das duas é extremamente harmônica: Teresa dedica-se a satisfazer, cuidadosamente, cada capricho de Alice. Sem perguntas, sem queixas. Simples assim. A satisfação de uma é o escopo principal da vida da outra. Teresa trabalha, mantém a casa, alimenta a ambas. Alice ocupa-se em dormir, se espalhar por toda a casa, tomar sol e, principalmente, dirigir a vida de Teresa – a diversão predileta. A distração de Teresa é usar a internet pela madrugada, ocasião em que pode ter contato com pessoas e fazê-las acreditar que é exatamente como gostaria. Corajosa, alegre, genial. Maravilhosa. Mas nem sempre Alice permite que ela se entregue ao passatempo, reivindicando peremptoriamente a atenção da amiga pra si. Ela dá palpites e ordens, zomba da fragilidade e frustra sem pestanejar os planos de Teresa. Alice vive feliz, em detrimento de Teresa. Esta depende da outra e a idolatra de tal maneira, que vive convicta de que mimá-la é a felicidade que pode ter. Sempre existirão os fracos e os fortes e, em relacionamentos é muito comum que aqueles dominem a estes. E nesse caso também seria, se Alice não fosse uma gata.


Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005

Dia de Mãe


Sentada na sala de espera, Ana acariciava o ventre ainda não distendido. Pensava no ser em formação, pulsando dentro dela. Imaginava um berço com fitas e babados, pequenas roupas coloridas, montes de fraldas, chupeta, brinquedos de pelúcia. Lembrou do álbum de fotografias felpudo em que ela própria chorava com vontade e sorria brejeira, desde os primeiros dias de idade. Inúmeras fotos, de todos os momentos. Filha única, os pais tinham vibrado com cada manha e cada gracinha, sempre cobrindo-a de mimos. Tinha sido dezessete anos muito cômodos e felizes. Pensando na mãe, lembrou-se de comprar o presente de domingo. Ela adorava presentes, ficaria feliz sem dúvidas. O que dar a ela? Com certeza não um neto, estava fora de cogitação. A família já tinha o bebê Ana, não precisava de outro. Desviando a atenção dos pensamentos, sorriu prá atendente vestida de branco - chegara a sua vez. Decidiu. Procuraria um presente bem especial prá mãezinha, logo depois da intervenção.

Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005
Imagem: ultrassom, autor desconhecido.

Vivendo em Harmonia


00:45. Uma baita segundona, eu revirando na cama, lutando prá conciliar o sono. Em vão. Algo estava muito errado, mas não conseguia atinar o que era. Por fim desisti da minha luta e abri os olhos, que eu mantinha fechados a custa de grande esforço. Bastou acender a luz prás minhas idéias clarearem: um cavaleiro medieval bradava solenemente, a plenos pulmões, prá quem quisesse ouvir na vizinhança toda.

Fiquei possuída. Acho que me lembro vagamente de ter rugido, quase um grito de guerra. Pulei da cama e me enfiei na primeira roupa que encontrei. Saí à rua, deserta e escura, e fui bater na casa do vizinho.

Portão de grades, nada de campainha. Bufei. Bati palmas. Era o único recurso antes de partir prá gritaria. Uma, duas, três vezes. Estava a ponto de me pendurar uivando no portão, quando lá do fundo, arrastando um chinelo de dedo, vestindo nada mais que um despretensioso bermudão amassado, apareceu o dono da sessão de cinema. “Pois não?”

Quase me virei do avesso. Pois não? Será que ele tem algum problema mental? Precisa mesmo que a vizinha apareça à porta descalça, descabelada e despejando faíscas insanas pelos olhos pra que o miserável perceba que o volume da televisão está muito além de qualquer boa vontade? Fiquei na dúvida se perguntava educadamente se ele tinha sido criado à margem da cachoeira ou se mais delicadamente ainda o mandava enfiar o controle remoto naquele lugar. Entre uma e outra, sorri (eu consegui essa façanha) e lasquei: “Oi. Desculpe incomodar a uma hora dessas, mas será que você pode abaixar um pouco o volume da sua televisão?”

Ele ficou me olhando, sem entender. O que me deu quase certeza de que o desgraçado tinha mesmo alguma seqüela. Ok, certo, eu desenho: “Estou tentando dormir (não dava pra perceber? Eu costumo pentear o cabelo prá sair de casa!) e não consigo!”

Ele pareceu compreender. E também me encarou como se achasse um abuso incrível eu bater na casa dele àquela hora, só por causa do volume da televisão. “Vou abaixar”. A cara de dignidade ofendida era perfeita, mas nem pude apreciar por muito tempo, porque ele virou nos calcanhares e sumiu casa adentro. Por minha vez voltei prá minha trincheira, disposta a invadir o território inimigo caso o armistício não fosse cumprido. Felizmente, o cavaleiro medieval se calou. Ou ao menos arrumou uma donzela que limpasse o ouvido para cortejar e parou de me infernizar.

Eu, descompensada, sentei prá escrever. Como dormir depois de travar tal batalha? Só me faltou um cavalo e uma armadura decente! Mesmo assim, acho que de cabelo eriçado e cara amarrotada, pareci muito ameaçadora ao meu oponente, cuja expressão escandalizada indica que deve estar me atribuindo lisonjeiras qualidades nesse momento. Filho da puta!

Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005
Imagem: cena do filme Rambo III.

Ledo Engano


Há pessoas que parecem fadadas ao sucesso, marcadas na testa pela boa sorte. Tem-se a certeza que basta que elas ajudem um pouquinho prá que tudo aconteça, da melhor forma. A loura era assim. Durante toda a vida, ela se destacou. Criança, assemelhava-se a criatura celeste. Púbere, já inspirava pensamentos bem menos puros. Alta e bem feita de corpo, tinha o sorriso largo e as maçãs naturalmente rosadas. Dona de ar infantil e zombeteiro, ostentava sedutora vivacidade. Combinação adorável de charme e presença de espírito. Ao observador desatento parecia desprotegida e, portanto, presa fácil. Ledo engano. A expansividade encobria a natureza reservada. Colecionava marcos significativos e inusitados: nunca tivera um namorado em toda a vida, e mais ainda, passara incólume pelo meio universitário, imune a todas as tentações sórdidas e saudáveis, comuns ao ambiente. Longe de ser inocente, ela empregava a malícia em despachar o pretendente tão logo o houvesse provado. Assim, eles se sucediam rapidamente, frustrados e perplexos. Não importava o desempenho, eles sempre eram descartados, agradando ou não. A romaria dos preteridos denotava um padrão: a loura escolhia entre os de tenra idade. Colecionava garotos, e quanto mais inofensivos, melhor. Nunca se havia aventurado além deles, não sabia o que um homem poderia oferecer. Não sabia o que era enlouquecer de tesão, nem conhecia a sensação de amar até a dor física. Ouvia os relatos das amigas e sentia que perdia algo, mas não se daria ao luxo de se deixar ser seduzida. O mundo como conhecia ruiria caso se apaixonasse. Estremecia só em pensar em perder o controle, em depender do movimento do oponente. “E se fosse o cara errado?” A dúvida a paralisava. E paralisou até que a vitalidade e o viço se extinguissem e não houvesse mais escolhas. Nem a mais radiante linha do destino pôde com o medo de viver.

Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005
Imagem: Céu Guitart.

Legal

"Circo"

*Complemento à crônica "Sensacional". O conteúdo não é tão leve, mas achei que quem critica deve expor os motivos.

O brasileiro médio não tem a menor noção das leis que regem a sua vida. Ele fala em “meus direitos” e “justiça” diariamente e nem se dá conta de que o sentido está errado ou distorcido. Sabe que não deve matar ou roubar – isso está nos mandamentos, não? – ou sofrerá punição. Mas pára por aí. A consciência legal dele não vai além de rudimentos e, geralmente quando se expande, cria aberrações como essa mania de “vou te processar por danos morais” ou “todo brasileiro tem direito à propriedade, então vamos invadir aquela fazenda”.

Muitos erros são cometidos todos os dias por causa de falta de entendimento do texto legal. Essa onda de “pega, mata, esfola” por causa de “racismo”, por exemplo, é fruto desse massacre interpretativo. Claro, é muito louvável que a preocupação acerca da discriminação por raça ou cor tenha aumentado tanto nos últimos tempos, mas é lamentável que o mesmo não ocorra ao bom senso da população.

A Constituição diz que “a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. E, baseado nisso, hoje no Brasil se você diz “ei, neguinho!”, pode esperar a tropa de choque e a execração pública, mesmo que esse “neguinho” seja seu amigo de infância.

A lei de que fala o texto constitucional define os crimes resultantes de preconceito – exemplarmente – como sendo, em suma, discriminar e prejudicar quem quer que seja por motivo de preconceito de qualquer natureza. Ou seja, impedir uma criança de se matricular numa escola, preterir um candidato a emprego ou diferir no tratamento a uma cliente no supermercado, por causa da cor da pele, constitui crime por preconceito. E como tal, deve ser tratado com o maior rigor. No entanto, em momento algum ela estabelece que “chamar alguém de negro, crioulo, preto ou seja-lá-qual-derivação seja crime inafiançável e imprescritível, sujeito à reclusão”.

O Código Penal, por outro lado, define as infrações chamadas de “crimes contra a honra”. Calúnia, difamação e injúria. Parecem a mesma coisa, mas não são. Acusar alguém de um crime que este não cometeu, é calúnia. Imputar a alguém fato genérico ofensivo é difamação. Qualificar alguém de forma pejorativa é injúria. É perceptível aonde se encaixa chamar quem quer que seja de “preto”, não?

Esse mesmo código diz que quando a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime é mais grave e portanto tem maior punição. Aqui novamente vemos uma preocupação quanto à prática preconceituosa, torno a dizer, muito louvável. Entretanto, a lei não fala em negar fiança ou declarar que a infração dure até a morte, apenas por se tratar de injúria racista.

Há que se notar a hierarquia normativa entre a Constituição e as demais codificações, bem como a maior e menor importância dos assuntos tratados por uma e outras. E encarar de forma razoável o assunto, de acordo com a situação concreta.

Voltando ao caso do jogador argentino preso na semana passada por “crime de racismo”, há muitas considerações a serem feitas.

Uma pessoa só é processada por crime de injúria mediante denúncia da vítima. Antes disso, a polícia ou o Ministério Público não têm competência para fazer nada quanto à ofensa praticada. Percebe-se que no caso em questão, o jogador argentino foi preso “em flagrante” antes mesmo que o jogador Grafite prestasse qualquer queixa. Aliás, essa prisão em flagrante é extremamente questionável, eis que o jogador cometeu o crime, a partida prosseguiu, terminou o primeiro tempo, o segundo e só então o delegado deu voz de prisão. Quanta pressa, não?

Pois bem, o jogador foi preso e então a vítima fez a denúncia, corrompendo o devido trâmite do inquérito policial. A multa estabelecida teve um valor exorbitante e o tratamento dispensado ao jogador argentino foi condenável. A imprensa divulgou amplamente o caso, e a opinião pública ficou em polvorosa quando o jogador foi solto por um crime “inafiançável”, quase hediondo! “Ainda mais um argentino!”

Certo, agora a análise é a seguinte: o jogador argentino não se tornou um estandarte? Não foi “punido exemplarmente” de uma forma irregular e questionável? A situação não foi sensivelmente agravada por ser o infeliz da malfadada nacionalidade argentina? Houve alguma imparcialidade na coisa toda? Se achar que sim, aponte para mim, então, pois meus olhos míopes não conseguem percebe-la.

Pense sob a seguinte perspectiva: o jogador argentino insultaria o jogador brasileiro do nada, apenas por que ele é argentino e portanto tem a índole ruim? Mais uma coisa: o jogador brasileiro foi insultado e “enfiou” a mão na cara do jogador argentino em resposta, na frente de milhares de pessoas. Não seria um comportamento que comprometeria a honra do argentino, tanto quanto um negro ouvir ali, no pé do ouvido, no calor do jogo, que é um “neguinho de merda”?

No citado Código Penal está escrito que “o juiz pode deixar de aplicar a pena quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria” e também “em caso de retorsão imediata que consista em outra injúria”. Ora, tinha havido outro jogo anteriormente àquele cuja prisão foi efetuada. Pode garantir que não se ofenderam e se agrediram mutuamente antes?

A história toda foi usada como bandeira para a causa anti-racista. Nesse momento, todos estão debatendo isso e todos têm respaldo para serem ouvidos. Grafite, Pelé, o Ministro de não-sei-o-quê, o Presidente Lula, Eurico Miranda, e quem mais quiser entrar na dança.

Jogadores brasileiros que jogam na Argentina garantem que na Argentina, tanto quanto aqui, chama-se uns aos outros de “neguinho” sem conotação racista alguma. O time do jogador preso afirma que vai pedir reparação por danos morais.

Com o devido respeito, o que aconteceu foi um circo ainda maior que os tribunais norte-americanos. A mídia foi uma catástrofe, os ativistas aproveitaram a repercussão de forma indevida e eis que quase foi gerado um conflito de proporções internacionais. Por causa de um joguinho de bola. É o cúmulo. Ainda bem que eu não entendo de futebol.


Lívia Santana.
Uberlândia - 04/2005
Imagem: autor desconhecido.

Sensacional


Até onde eu sei, a lei brasileira é muito boa. Afora algumas medidas estapafúrdias aqui e ali, o texto é bem feito e teoricamente bem fundamentado. (Se é cumprida é outra história, mas que é boa, é). Já da mídia não se pode dizer a mesma coisa. Não que esta não seja ágil ou eficiente, longe disso. A imprensa brasileira supera aquelas belas criaturinhas aladas de Deus - os abutres - no quesito "farejar desgraça". Imbatíveis! E, no entanto, a opinião pública desce o malho no sistema jurídico sem pensar duas vezes e engole qualquer gororoba servida pela mídia. Basta que se pinte em cores sensacionais o bastante - o que não é o forte da Justiça (afora o circo norte-americano!) - para que o cidadão se sinta satisfeito e pense consigo mesmo "como sou bem informado!". Entretanto, tamanha agilidade da imprensa pressupõe algo mais: a imprecisão. Não dá tempo de dar a notícia em primeira mão e consultar antes a assessoria, seja lá do que for. Afinal, o que importa se está tudo errado, se o repórter não entende patavina do que está falando, ou que a informação não cole lé com cré? Ele tem é que chamar o Plantão - aquele, da musiquinha apavorante, que traz todo mundo prá sala, perguntando: "Quem morreu agora?" - bem no meio do filme, prá contar prá todo mundo, antes da concorrência, que aconteceu sei lá o quê com sei lá quem.

Quando prenderam o tal do jogador argentino que xingou o tal do Grafite, os abutres, digo, os repórteres fizeram um rega-bofe caprichado. Segundo as reportagens, o "argentino foi preso por racismo", o que foi repetido pelos brasileiros-espectadores leigos a torto e a direito. Logo em seguida, essa mesma idéia causou a indignação apaixonada desses leigos ao saberem que "o safado do argentino tinha sido solto": - "aonde é que nós estamos?", "a justiça nesse país é uma vergonha!". Visitar um desses canais de notícias na internet implicaria em dar de cara com uma enquete cheia de razão, convidando o navegante - não internauta - a opinar se "a punição para o argentino foi justa" ou "se concorda com a soltura" do dito cujo. Se perguntar a qualquer um desses indignados participantes de enquete o que aconteceu, ele dirá, muito vagamente, que o "safado do argentino xingou o Grafite de preto e foi preso por racismo!". Não foi o que deu no jornal? Então é isso mesmo, oras! Se eu chegasse prum cidadão desses e dissesse que o argentino não foi preso por racismo e sim por injúria, ele riria da minha cara. "que história é essa de calúnia?" - Calúnia não, injúria.´Por preconceito. "é a mesma coisa!" "não sabe do que está falando!". E prá finalizar em grande estilo: "Mulher não entende de futebol, mesmo!"

Lívia Santana.
Uberlândia - 04/2005
Imagem: Paulo Pinto.

Simbiose


Estavam juntos há muito tempo, desde que eram pouco mais que crianças. Ele, tímido, inseguro, atormentado. Ela, despachada e confiante. Ele era franco e idealista. Ela sempre sorria. Cru, ele levava a vida em teoria. Ela, a despeito de ter a mesma idade, tinha visto coisas demais. Ele se afligia. Ela não parecia se importar. Os olhos dele interrogavam. Os dela, pestanejavam. Eram facetas diferentes do mesmo mundo. Ambos irradiavam a energia imensa e estúpida da adolescência. Ele começaria a viver a partir dali, ela estava cansada. Alguma congruência: eram inteligentes e tristes. E novamente divergiam: ele ostentava, ela dissimulava. A ele tratavam como aberração, a ela como pedaço de carne. Típicos. Conheceram-se dum jeito nada especial, num dia comum. Conversaram, mediram-se, beijaram-se. Ela nada esperava dele. Ele não sabia o que esperar dela. A reputação dela era péssima. Ele procurava desesperadamente algo em que acreditar. Ele quis dar-lhe o mundo. Ela almejou estar à altura dele. Colocou-o no colo. Colocou-a num pedestal. Faria-a feliz. Viveria para ele. Fundiram-se. Não estariam mais solitários e sempre haveria então um motivo. Ela tornou-o vivo, ele fê-la sentir-se limpa. Aprenderam a ver de outros jeitos. Compartilharam lágrimas, risadas e a maioria dos pensamentos. Amaram-se com sofreguidão. Passaram horas e anos entrelaçados. Apoiaram-se e feriram-se. Amigos, eram perfeitos. Amantes, eram medíocres. Houve pequenas traições. Às promessas, às expectativas, à monogamia. Não sabiam viver de outro modo. Quase repulsa e quase adoração. Ele era dependente. Ela ressentia-se desse peso, mas sentia-se responsável por ele – nunca achara que o merecia. Ele parecia tão perdido quanto antes. Sofria, temia perdê-la. Ela faria qualquer coisa para salvá-los. Algo saíra muito errado e cabia a ela consertar. Desprezou o tempo: engoliu em seco as angústias e voltou a adolescer. Riu alto, alegre e leviana, como no começo. Os olhos dele marejaram-se, saudosos. Mas ela não deixaria que ele estragasse tudo de novo. Arrastou-o pra cama e deu-lhe a dose de sujeira que ele sempre precisara, prá entender muita coisa.

Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005
Imagem: autor desconhecido.

Cor de Carne


Ela se esmerou. Cabelos, unhas, pêlos. Perfume e batom. Veludo encarnado. Rosas e almofadas. Trilha suave, montes de velas, grandes e pequenas. Cor de sangue. Às dez, o quarto ardia como o inferno. Nua, ela esperava prostrada aos pés da cama. Humilde. A coleira de veludo em contraste com a pele alva, as chamas crepitavam. Entrando silenciosamente, ele tomou nas mãos uma das velas. Cutucou-a com o pé e ordenou que deitasse no chão, olhos fechados. O tempo escoava e nenhum dos dois fazia movimento algum. Por fim, sem conter a agonia, ela suspirou. Imediatamente, ele tingiu-lhe de rubro a pele, derramando a vela sobre os mamilos. Gemido, lágrimas, alívio. Agora estava quase em paz. A queimadura atenuava o ardor da alma.

Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005
Imagem: Mara Costa.

Persuasão


- Não adianta, nunca consegui. - apagou o cigarro.

Encarou-o, debochada. Postou-se em frente a ele, mãos na cintura, desafiante. Uma bofetada a atirou contra a parede. Ele se aproximou, sereno. Ela, olhos enormes e assombrados, respiração irregular, excitação crescente.

- Peça! - açoitou-a esta única palavra.

Abaixou a cabeça. Ele pisou em seus dedos. Era quase insuportável.

- Mais, por favor!

Com o primeiro chute, sentiu-se flutuar. Gozou seguidas vezes, no ritmo do punho dele.


Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005
Imagem: autor desconhecido.

Isa


Lá vinha ela, Isa. Uma visão. Morena das ancas largas, bamboleantes, pele acetinada. Os cabelos, em cachos escuros e brilhantes, caíam-lhe pelas espáduas, emoldurando o belo rosto e balançando no ritmo dos quadris. Os olhos, claros, quase amarelados, marcados por cílios longos e escuros. Os lábios, cor de carne, cheios, convidativos, se abriam num leve sorriso, revelando a fileira de dentes alvos e regulares. As pernas longas se moviam graciosamente, balançando a saia provocantemente em torno dos joelhos. Um animal vigoroso. Uma mulher que incomodava. Fazia latejar desejos insidiosos e impronunciáveis. Deixava um rastro eletrificado pelos olhares cobiçosos que a seguiam. Caminhava despreocupada, o vento brincando-lhe com os cabelos e as roupas, causando uma leve expressão de prazer em seu rosto. E Isa, passando como sempre em frente à minha casa, afigurava-se a cada dia mais irreal e desejável. Um espetáculo irresistível a mim, hipnotizado à janela. Meu sangue se revolucionava e mal podia me mover. Ficava ali, rígido e atormentado, sabendo que à noite, suado e insone, ainda a veria. E o dia demoraria eternamente a chegar, mais uma vez.

Lívia Santana.
Uberlândia - 12/2004
Imagem: autor desconhecido.

(In)Constância


É notável o quanto a realidade está sempre aquém da imaginação, seja em negras ou douradas construções. Entregue aos devaneios e piruetas da mente pouco linear, sempre pinto em cores carregadas, berrantes, luminosas - exageradas - os fatos e as possibilidades. O que imagino é sempre pior, o que idealizo é sempre bom demais para ser alcançado. Monstros embaixo da cama agigantam-se, gostos se tornam insossos, sensações pífias, sentimentos irrisórios. Confrontadas realidade e fantasia, é inevitável que a primeira leve a pior e faça ruir tudo o mais construído sobre a idéia falaciosa. Os escombros de ilusão alimentam, adubam, fermentam novas idéias, que pululam e vicejam, antes mesmo que as possa controlar, para ruir inexoravelmente em seguida. Seguir construindo sobre a areia, parece ser a sina. Tais fantasias assemelham-se a trepadeira parasita se desenvolvendo rápido demais, sugando a noção da realidade e anulando qualquer ponderação. Como um véu. Uma dança cíclica e frenética, alternando entre erigir castelos e botá-los abaixo em seguida. Entre latência e arritmia. Uma droga. E aumento a dose.


Lívia Santana.
Uberlândia - 11/2004.
 
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