sexta-feira, 23 de maio de 2008

Vivendo em Harmonia


00:45. Uma baita segundona, eu revirando na cama, lutando prá conciliar o sono. Em vão. Algo estava muito errado, mas não conseguia atinar o que era. Por fim desisti da minha luta e abri os olhos, que eu mantinha fechados a custa de grande esforço. Bastou acender a luz prás minhas idéias clarearem: um cavaleiro medieval bradava solenemente, a plenos pulmões, prá quem quisesse ouvir na vizinhança toda.

Fiquei possuída. Acho que me lembro vagamente de ter rugido, quase um grito de guerra. Pulei da cama e me enfiei na primeira roupa que encontrei. Saí à rua, deserta e escura, e fui bater na casa do vizinho.

Portão de grades, nada de campainha. Bufei. Bati palmas. Era o único recurso antes de partir prá gritaria. Uma, duas, três vezes. Estava a ponto de me pendurar uivando no portão, quando lá do fundo, arrastando um chinelo de dedo, vestindo nada mais que um despretensioso bermudão amassado, apareceu o dono da sessão de cinema. “Pois não?”

Quase me virei do avesso. Pois não? Será que ele tem algum problema mental? Precisa mesmo que a vizinha apareça à porta descalça, descabelada e despejando faíscas insanas pelos olhos pra que o miserável perceba que o volume da televisão está muito além de qualquer boa vontade? Fiquei na dúvida se perguntava educadamente se ele tinha sido criado à margem da cachoeira ou se mais delicadamente ainda o mandava enfiar o controle remoto naquele lugar. Entre uma e outra, sorri (eu consegui essa façanha) e lasquei: “Oi. Desculpe incomodar a uma hora dessas, mas será que você pode abaixar um pouco o volume da sua televisão?”

Ele ficou me olhando, sem entender. O que me deu quase certeza de que o desgraçado tinha mesmo alguma seqüela. Ok, certo, eu desenho: “Estou tentando dormir (não dava pra perceber? Eu costumo pentear o cabelo prá sair de casa!) e não consigo!”

Ele pareceu compreender. E também me encarou como se achasse um abuso incrível eu bater na casa dele àquela hora, só por causa do volume da televisão. “Vou abaixar”. A cara de dignidade ofendida era perfeita, mas nem pude apreciar por muito tempo, porque ele virou nos calcanhares e sumiu casa adentro. Por minha vez voltei prá minha trincheira, disposta a invadir o território inimigo caso o armistício não fosse cumprido. Felizmente, o cavaleiro medieval se calou. Ou ao menos arrumou uma donzela que limpasse o ouvido para cortejar e parou de me infernizar.

Eu, descompensada, sentei prá escrever. Como dormir depois de travar tal batalha? Só me faltou um cavalo e uma armadura decente! Mesmo assim, acho que de cabelo eriçado e cara amarrotada, pareci muito ameaçadora ao meu oponente, cuja expressão escandalizada indica que deve estar me atribuindo lisonjeiras qualidades nesse momento. Filho da puta!

Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005
Imagem: cena do filme Rambo III.

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