Leo era agregado da família da tia, irmã da mãe. A esta, raramente via – vivia mudando, de parceiro e de cidade. Não conhecera o pai, cuja identidade a mãe não tinha certeza. Era um incômodo: recebia casa, comida e má vontade, ocupava um sofá-cama no quartinho dos fundos. O trabalho como balconista rendia-lhe exaustão e salário mínimo, a vida era árida. Mas Leo era infeliz, não resignado. Entrou prum curso noturno e, a despeito das probabilidades, passou na prova do vestibular. Escolheu o curso levando em conta dois fatores: a dificuldade – o que excluiu a Medicina – e o status da profissão, o que tornou o Direito a opção mais indicada. Estava então num mundo novo, absurdamente vistoso e cheio de possibilidades, para quem tivesse visão. Leo sabia a quem deveria agradar e nisso se empenhou. Tornou-se parasita charmoso, desfrutando largamente dos privilégios daqueles que elegera para amigos. Gastava o salário em roupas e freqüentava os melhores lugares – sempre por conta de algum amigo pródigo. Arrumou novo emprego num escritório renomado, por indicação de um herdeiro. A boa aparência e o carisma o tornaram popular com o sexo feminino, e ele cercou-se de muitos exemplares. Finalmente, era tratado como merecia. Vendo-o, julgavam tratar-se de um deles, equívoco que ele fazia questão de estimular.
Bia tinha biótipo de boneca. Olhos grandes e muito azuis, tez muito branca e suave, longos e brilhantes cabelos louros. Longilínea. Delgada. Quase etérea. A princesa dos contos de fadas, se princesas fossem depressivas e tivessem um grave problema de auto-estima. Filha de pais separados, detestava a madrasta e tinha aversão aos filhos do padrasto, razão pela qual os pais montaram-lhe um apartamento na cidade vizinha. Deram-lhe um carro, polpuda mesada e autonomia. Pagavam as contas. A vida era mansa. Raramente ligava para a mãe. Acostumou-se à solidão, embora a odiasse. Talvez para preencher o vazio, envolvia-se incessantemente em problemas. Seus relacionamentos sempre resultavam em lágrimas, como se tivesse mórbido prazer em precisar de drogas para dormir. Entre uma decepção e outra, foi para universidade. Não muito afeita a esforços, escolheu um curso que não exigisse grandes aptidões e a tornasse profissional – o Direito. Foi alvo de grande assédio desde o princípio: aparentava ser o tipo de garota ideal a ser exibida, como um troféu. Entretanto, Bia tinha fome de grandes amores e pendor irresistível a grandes dramas. Queria mistérios, rituais de conquista, obstáculos a serem superados. Algo que a frivolidade dos rapazes não conseguia alcançar e, portanto, nenhum obteve êxito.
Leo e Bia colidiram no campus numa noite fria dessas. Delicada, ela teve um hematoma. Ele a cobriu de atenções – machucara um anjo! Encantaram-se. Ela era o luxo perfeito para arrematar a vida dourada que ele tinha idealizado. Ele trazia nos olhos todo o mistério e a intensidade de que ela precisava. Belos, formaram vistoso casal. O sentimento, arrebatador no princípio, cresceu exponencialmente com o passar dos meses. A paixão era óbvia, até incomodava. Os grandes olhos azuis dela sorriam ao vê-lo, os escuros dele estreitavam-se ainda mais, ardentes. Adotaram como sua a música homônima, considerando um prelúdio do “felizes para sempre”. Pertenciam-se, era um sinal. Criaram pra si um mundo à parte. Ela dedicou-se a ele e afastou-se das amigas, as quais admiraram a entrega e velavam pela felicidade do par. Ele ficou orgulhoso de tê-la consigo – o que nenhum dos amigos conseguira – e procurou conservar apenas os companheiros de farra mais influentes, que envenenavam sutilmente a relação. Independente do que achassem do casal, os colegas habituaram-se a vê-los sempre juntos. Tanto, que não deixaram de notar quando Leo apareceu sozinho por seguidas vezes. Ele não encorajou perguntas, ninguém insistiu. Ao cabo de uma semana, Bia voltou ao braço do namorado, sorridente. Tivera uma gripe, só isso. Estava tudo bem, o incidente foi esquecido. Mas o sorriso de Bia deixara os olhos, mal chegava aos lábios. Leo estava inquieto, suscetível, ciumento. Impetuoso, parecia vigiá-la. Ela empregava toda a energia em ser natural e garantia que tudo corria bem. Tornou-se mais esquiva e ele foi visto de novo em companhia dos amigos dissolutos. Discutiram em público pela primeira vez. Mesmo visivelmente apaixonados, chegara o tempo do drama. Bia empalidecia e Leo assombreava-se. As brigas em público sucediam-se, cada vez mais terríveis, seguidas de tórridas reconciliações. Ninguém se surpreendia mais com a tormenta quando Bia teve outro hematoma, este no pulso. Outro tombo, nada sério, ninguém precisava se preocupar. Ela repeliu aproximações e negou, veemente, que tivesse algum problema. Mas foi internada em seguida e os ferimentos não deixavam margens a enganos. Surda a qualquer argumento, Bia asseverou que a culpa era dela. Não era capaz de entender o quanto Leo a amava e ele apenas mostrava o quanto ela o magoava. Ela tinha que aprender. Afinal, estavam destinados. Leo e Bia tinham que saber se amar. O que ela não considerou é que o primeiro sinal do destino não tinha sido a música e sim o hematoma. Essa consideração coube à mãe, inconsolável quando, semanas depois, o caixão foi velado com a tampa cerrada.
Lívia Santana.
Uberlândia - 06/2005
Imagem: autor desconhecido.
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