terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Apenas Mais Uma de Amor


Aqueles dois eram o que havia de mais diferente possível. Dois mundos absolutamente apartados, duas formas de viver totalmente diversas. E nem era o caso de serem opostos ou de se completarem. Nada de um ser a noite e o outro o dia, um o frio e o outro o calor. Não, nada disso, não perca tempo com devaneios românticos. Apenas eram díspares, nada tinham a ver um com o outro, nem motivo nenhum para se tornarem um par. E, a despeito de todas as probabilidades, foi o que aconteceu. Curiosidade, talvez. Nem eles mesmos sabiam o porquê de ficarem juntos, acho mesmo que não existia.

Ela era meio desenxabida, estava um pouco acima do peso e tinha constantes mudanças de humor. Ele era irascível, meio pomposo e um pouco preconceituoso. Ela era muito inteligente e tinha um lindo sorriso. Ele era muito culto e tinha um notável senso de humor. Ela trocava qualquer multidão por um bom livro ou filme. Ele sentia necessidade de barulho e badalação. Muito branca, ela não gostava de sol nem de programas "de gente saudável". Ele era atleta de fim de semana e adorava caminhar na praia. Ela, muito introspecta, ouvia a maior parte do tempo em que ele, falastrão, mal tomava o fôlego entre um assunto e outro.

Os dois formavam um casal estranho, tinham um caso de amor mal feito (mal escrito?), como se quem o idealizou tivesse se esquecido de adicionar a maioria dos ingredientes que conferem graça e encanto aos casos de amor. Mas, ainda assim, era um caso de amor e, no começo - como de costume - as coisas correram bastante bem.

O sexo parecia ótimo a julgar pelo volume dos gemidos e gritos. Ela gritava muito, sempre. Muitas vezes, mais pelo prazer de ouvir a si mesma do que pela performance do namorado. Além disso, tinha a sensação de que, se gritasse, já era um passo dado para o orgasmo, como se a ordem não fosse inversa. Ele ficava eufórico com os gritos e sentia-se cada vez mais potente. Então gozava e caía de lado, pegando no sono quase instantaneamente, com a sensação de dever cumprido.

Mesmo um pouco torto, havia excitação e enlevo no caso deles. Encantavam-se, menos um com o outro, do que com o inusitado da situação, com o desafio, com o desconhecido, é verdade, mas não deixavam de encantar-se. Nada sabiam um do outro e, por mais que conversassem, não conseguiam se comunicar de forma plena. Mas isso não foi problema durante muito tempo, já que tinham se idealizado mutuamente.

Amar um personagem é muito cômodo e lindo - este é o segredo do cinema. E estavam ambos mais interessados no que recebiam um do outro do que em qualquer coisa mais profunda.

Apenas era bom estar junto de alguém, ter com quem falar, para quem telefonar, ter alguém para dividir os acontecimentos do dia. Não importava se o outro não entendia muito bem o que escutava ou se não estava muito interessado, o mais importante era sentir que tinha alguém para ouvir. Por isso se amavam, por isso permaneciam juntos.

Passados quase quinhentos dias, no entanto, as coisas pareceram diferentes. Impossível saber quem mudara, se o relacionamento, se um dos dois, se ambos. O fato é que os pilares da realidade não eram mais fortes o suficiente para sustentar as fantasias, e até mesmo os personagens principiaram a derrocada. 

De repente, ela lhe pareceu intoleravelmente gorda e preguiçosa, e passou a recomendar-lhe todos os dias que fizesse exercícios. Ele tornou-se enfadonho e irritante aos olhos dela, que não suportava mais as piadinhas costumeiras de que sempre rira. Os gritos não eram mais eficazes para garantir o gozo, e a frustração foi aumentando, de ambas as partes.

Discutiam o tempo todo e com cada vez maior ferocidade, até que ela fez as malas e deixou um bilhete, avisando que tinha ido embora. Ele ficou furioso e tentou contatá-la durante dias, sem êxito. Não teve mais notícias dela e a raiva acabou esfriando. Sentiu um vazio e ficou triste por algum tempo, mas não muito. Só até conhecer uma outra moça que tinha o sorriso dela, mas que adorava a praia e também era atleta de fim de semana. Então...

Lívia Santana
Uberlândia - outubro/2005
Imagem: autor desconhecido.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Poder


Eu caminhava pela sala de aula de um lado para o outro, gesticulando e falando animadamente, quando tudo aconteceu. O tema era um dos meus preferidos, as relações de poder, e só agora percebo a ironia da situação. Era como se ela tivesse escolhido aquele momento em especial para se divertir às minhas custas. Nem sei dizer o porquê de tudo ter acontecido daquela forma, tendo bastado apenas um encontro de olhares. Virei-me do quadro negro para os alunos e dei de cara com ela me olhando de um jeito diferente. Diferente como, não sei dizer, mas perdi a ação por alguns segundos, o que não passou desapercebido a ela, que sorriu triunfante.

Era linda, isso era inegável. Mas sempre olhara para ela e vira uma menina atrevida, irreverente e inteligente, que crivava o professor de perguntas sagazes e tirava dez nas provas. Nunca tinha olhado tão fundo dentro daqueles olhos pretos traiçoeiros nem tinha visto-a sorrir como mulher. Fiquei atrapalhado. Senti o rosto queimar, enquanto ela ria da minha confusão. Saí para o abrasivo sol de quase meio dia, tomei água e procurei me recompor. Minutos depois voltava à sala, e ela adquirira de novo o ar inocente, fazendo-me pensar se o ocorrido não fora criação minha, fruto do calor. Mas, encerrada a aula, ela veio me procurar, abraçando o caderno contra os seios mal contidos sob a camiseta despojada. Cumprimentou-me pela aula e disse que voltaria à noite para tirar umas dúvidas. Assenti e fiquei vendo-a se afastar. De repente, até o leve balançar dos quadris ao caminhar me parecia provocação deliberada.

Procurei deixar o acontecimento de lado, não pensar nela durante o dia todo, mas foi em vão. Quando se aproximou a hora em que ela deveria chegar, engolia em seco. Ansiava pelo próximo movimento dela, e ao mesmo tempo temia-o como à danação. Olhava a todo o momento para a entrada, esperando avistá-la, e qual não foi a minha decepção quando as horas passaram e não chegou. Dei a última aula da noite e me preparava para ir para casa, no estacionamento, quando senti uma mão pequena pousar no meu braço. Levantei os olhos, e lá estava o mesmo sorriso que me tirara o sossego havia apenas algumas horas. E parecia outra vida, mal conseguia me lembrar dela de camiseta e rabo de cavalo, mordendo a ponta da caneta. Ainda mais a olhando agora, usando um vestido vermelho bem curto e os cabelos escuros escorridos sobre os ombros. Os olhos pareciam ainda mais pretos e perigosos, se é que era possível.

Disfarçando a surpresa, perguntei em tom de brincadeira: “Ué, você não tinha umas dúvidas para tirar?” Compenetrada, ela respondeu que sim, sem tirar os olhos dos meus. “E quais eram?” Ela passou as mãos pelos cabelos, que teimavam em cair sobre o rosto e disparou: “Quero saber, professor, se você quer me beijar”. De novo ela me deixou desconsertado e riu deliciada. Acho que a idéia de mexer com a minha cabeça a agradava mais do que a perspectiva de me beijar de verdade. Não sabia qual era a intenção dela, não sei mais o que pensei naquele momento, mas me vi puxando-a pelo braço e invadindo a boca vermelha com a língua. Encostei-a no carro e comprimi o corpo contra o dela, latejando dentro do jeans. Não pensava mais em nada, só a queria com furor, naquele minuto, não importava que alguém visse. Mas ela tinha outros planos. Desvencilhou-se, hábil, do meu abraço, recuou até uma distância segura e voltou a rir: “Eu perguntei se queria me beijar, professor, só isso”. E, fazendo uma careta travessa, foi embora, deixando-me ali, febril e incrédulo.

Durante toda a semana seguinte ela não compareceu às aulas, o que me deixou insatisfeito e irritado. Garota maldita, tirava a minha paz e me deixava assim, doido, esperando por ela. Mas a raiva passou toda quando recebi um bilhete dela, marcando um encontro à tarde. Cheguei ao local designado, o apartamento era de uma amiga, ela me disse depois. Abriu a porta e apenas me olhou com aqueles olhos de feitiço por muito tempo, para logo em seguida me puxar pelo braço pro sofá e não mostrar resquício de hesitação. Passei a tarde inteira dentro dela e acabei descobrindo que ela se instalou ainda mais fundo em mim. Estava apaixonado. O nosso relacionamento durou exatos oito meses, durante os quais estive completamente entregue, nas mãos dela. Adorava-a por horas a fio, não me cansava de olhar para ela, que era um mistério. Tinha rompantes de fúria e ria desbragadamente minutos depois. Num momento, ela zombava da minha paixão, dizia que eu parecia adolescente. E no momento seguinte me amava com ardência, deixando-me extenuado e feliz.

Lembro do fim como se tivesse acabado de sair daquele apartamento há poucos minutos, o mesmo da primeira vez. Passáramos a tarde entre os lençóis, como fazíamos sempre que podíamos. Deitado de lado, eu a olhava, conferindo cada detalhezinho daquele corpo adorado. A pequena cicatriz no ombro, a pinta sob o seio direito, o abdome reto e macio. Perdido em devaneios incautos, observei-a levantar-se da cama, lavar-se e vestir-se, sem olhar para mim. Penteava os longos cabelos lisos, quando a abracei por trás, pretendendo um carinho. Ela colocou as mãos sobre as minhas e olhou-me diretamente nos olhos através do espelho, como se me dissesse algo. Então eu vi. Na mão direita, uma aliança dourada brilhando absurdamente, ferindo-me os olhos e os sentimentos. Por um momento não compreendi. Ela virou-se para mim, tomou meu rosto entre as mãos e sussurrou: “Adeus”.

Lívia Santana.
Uberlândia - outubro/2005

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Império dos Sentidos


Um amigo recomendou-me outro dia que assistisse a Império dos Sentidos, que eu iria gostar. Sendo ele um cara inteligente e de bom gosto, fiquei curiosa - nunca tinha ouvido falar. Saí de casa dizendo que ia à locadora buscar este filme e a cara de espanto da minha mãe foi impagável, merecedora de pôster e moldura. Não entendi nada até chegar à locadora: a atendente me disse que o filme em questão estava na seção pornográfica. Fiquei desconsertada. Eu tinha ido locar um filme pornô sem saber. O meu amigo teria achado um filme pornô "a minha cara"? (não que eu não goste, mas isso é outra história). Bom, já estava ali, então não ia dar pra trás. Empinei o nariz e disse: "dá esse mesmo".

Em casa, fui entrando e anunciando: "Vou ver Império dos Sentidos, alguém me acompanha?" Veio todo mundo para a sala. Papai, mamãe, irmão, cachorro. Ah, então o filme era "indecente" mas ninguém ia perder, né? Só eu mesmo pra assistir um filme desses em família, arre! Soltei o filme. No princípio os adolescentes se cansaram: "Pó, filme de japonês?", mas logo em seguida arregalaram os olhos e ninguém falou mais nada. Aliás, minto. Volta e meia mamãe soltava um: "credo!".
Dirigido por Nagisa Oshima, Império dos Sentidos é ambientado em 1936, quando o Japão era marcado pelo conflito entre as culturas oriental e ocidental. Abe Sada, a personagem principal, emprega-se na casa de Kichizo e, entre as tarefas humildes, espiona as intimidades do patrão e da esposa durante algum tempo, até que ela mesma se torna amante de Kichizo.

Mas Sada está longe de ser a amante como estamos acostumados a pensar. Furtiva, relegada ao segundo plano, resignando-se em ser uma válvula de escape para o casamento do amante. Não. Ela se torna o centro da vida de Kichizo e nunca se envergonha do seu amor e de seu ato sexual, não se importando sequer em ser observada, em fazê-lo em público.

Sada é considerada a representante de uma era pré-ocidental e pré-cristã, em que, em lugar da virgindade, o principal valor é a experiência. Ela torna a prática sexual uma necessidade, através da qual busca saciedade e gozo incessantemente. Experimenta de tudo, faz questão de procurar o prazer em cada recôndito do corpo e da alma do amante e da sua própria.

Os amantes evocam práticas diversas para temperar o ato sexual como voyeurismo, pompoarismo, sadomasoquismo e até asfixia. Há cenas fantásticas e antológicas, como a do ovo - não vou contar, morram de curiosidade ou assistam ao filme! - ou a final, majestosa e chocante.

O filme significou um ato de libertação, uma mudança na vida de cada um dos envolvidos. Os atores fizeram sexo realmente em todas as cenas - a esposa do protagonista teve que aceitar a idéia do marido tendo relações com outra mulher ante uma câmera. Segundo o próprio diretor, a equipe técnica transformou-se em idólatra da erotômana Abe Sada, transformando a atmosfera das filmagens e da própria película, em ritualística, densa, solene. Assistir ao filme é presenciar o culto a uma entidade: o sexo.

Lívia Santana
Uberlândia - setembro/2005.
Imagem: pôster do filme.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Cartomante


“Dona Madalena. Joga búzios, tarô, lê a mão. Vê o futuro. Faz amarração para o amor”.

Ela hesitou, revirando o panfleto nas mãos suadas, cujas unhas roídas denunciavam a ansiedade. “E se...?” Custava a decidir-se. Nunca fora crédula, sempre resolvera os próprios problemas com certa facilidade. Sempre pensara que crendices eram para ignorantes ou desesperados, se não ambos. Joana não, era mulher culta, viajada, independente. Conseguia tudo o que desejava, acreditava em si mesma. E agora estava ali, segurando aquele panfleto amarfanhado entre os dedos inquietos, relutando em reconhecer-se impotente para o que quer que fosse. Cartomantes. Sim, isso era coisa para desesperados. Mas não era assim que se sentia? Já tinha tentado de tudo e nada surtira efeito!

Decidiu-se, iria ver a cartomante.

A sala de esperas era pouco iluminada e recendia a almíscar. Incenso. Pequenas almofadas vermelhas espalhavam-se por sobre as poltronas e pelo chão, um sino de vento em forma de luas e estrelas estava pendurado num canto. Havia mais duas clientes além dela. Uma moça jovem e loura com os olhos inchados de tanto chorar, usando um vestido rosa amarrotado, que a deixava mais pálida e infeliz. A outra beirava os quarenta anos, tinha os cabelos tingidos de uma cor indistinta, vestia-se com apuro e trazia nas mãos uma pomba branca amarrada com um lenço vermelho, quase esmagada tanta era a força com que era segurada.

Acabara de sentar-se e a cortina púrpura do canto abriu-se dando passagem à – supunha – Dona Madalena. Tinha cabelos cor de fogo revoltos e unhas compridas pintadas de vermelho sangue. Usava óculos roxos com as extremidades puxadas para cima e uma longa túnica da mesma cor dos óculos. O olhar era azul e amalucado, como desenho animado.

Teve impulsos de ir embora. Aquela figura inusitada parecia precisar mais de ajuda do que ela. Porém controlou-se, enquanto a mulher com a pomba saltava da cadeira, visivelmente excitada: “Dona Madalena, aqui está!” e estendeu o bicho na direção da anfitriã. “Muito bem! Há quanto tempo o animalzinho está amarrado?”, perguntou esta com um sorriso ainda mais maluco. “Seis horas”, foi a resposta. “Ah, então aguarde mais um pouco... assim que completar as dez, falaremos”. A mulher da pomba sentou-se, aparentando alegria.

“Ela vai esperar mais quatro horas?” – o impulso de ir embora veio mais forte que nunca.

A cartomante virou-se então para a mocinha loura. “Pronta, querida?” A menina encarou-a com os olhos tristes e negou com a cabeça, mal contendo as lágrimas que tornavam a cair.

“Então parece que é a sua vez”. – a vidente sorriu. Respirando fundo, Joana levantou-se e passou através da cortina púrpura. Lá dentro era abafado e o cheiro de almíscar era ainda mais forte. Sentou-se na cadeira indicada, em frente a uma mesinha redonda. Dona Madalena sentou-se em frente a ela e tomou a mão direita de Joana. Depois de alguns minutos enunciou: “O nome dele é Raul. Um Adônis. Arquiteto, bem vestido, discreto, educado, exímio dançarino. Solteiro, sem filhos, sem namorada. Conquista todas as mulheres que o cercam e não elege nenhuma. Um enigma. Certo?”.

Surpresa, Joana reconheceu que era verdade. Dona Madalena trocou a mão direita pela esquerda e tornou: “Entre tantos homens que a disputam, você se interessou pelo único que a repudia. Já usou diversos expedientes para envolvê-lo e nenhum obteve êxito. Já se ofereceu, já interpretou a moça frágil e a mulher dominadora, já se aproximou da mãe dele, já se enturmou com os amigos, já tentou até embebedá-lo. Nada. Ele continua indiferente. Está se consumindo pela paixão não correspondida. Sonha, fantasia, e sente que morreria para tê-lo”. E fitando-a com o olhar divertido, indagou: “Estou certa?”

Joana balançou a cabeça em sinal afirmativo, epantadíssima com o que acabara de ouvir. E como a cartomante mantivesse silêncio, inclinou-se para frente, ansiosa: “A senhora pode me ajudar?”

Dona Madalena alisou os cabelos cor de fogo, pensativa. “Posso, sim, menina, mas não da forma como pensa”. Joana franziu o cenho: “Como assim?”.

A cartomante tirou os óculos. Parecia outra pessoa, com expressão séria e espantosamente lúcida. “Acho que o melhor a fazer é esquecer isso, nenhum capricho vale tanto desgaste”. Joana apressou-se em falar, em defender a sua paixão com veemência, mas foi impedida pela outra. “Pense comigo, menina. Não acha que ele é perfeito demais?” Joana indignou-se: “A senhora está insinuando que ele é bom demais para mim?” A cartomante riu. “Não, querida. Estou dizendo simplesmente, que ele é bom demais. Pense. Bem vestido, sabe dançar, cozinhar, pinta, gosta de filmes de arte, de ópera e de se exercitar. O que podemos concluir disso?”.

Joana deixou cair o queixo. Não podia ser!

E, ante a expressão estarrecida da moça, Dona Madalena sorriu docemente. “Se o seu nome fosse João, querida, não haveria nada que a impedisse de conquistá-lo”.


Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A Rainha das Mulatas


Feche os olhos e imagine um amplo pátio calçado de pedras em noite de lua cheia. Imagine um grande número de pessoas reunidas em ambiente de alegria festiva. Violão e cavaquinho enchem o ar com acordes vibrantes de música crioula, alguns ensaiam tímidos passos de dança.O clima é o dos rituais pagãos de adoração e celebração pela vida. Então imagine uma mulher. Ela salta para o centro da roda do samba, atraindo todos os olhares com o movimento lasso dos quadris. Tem longos cabelos escuros e curvas generosas. Exala vitalidade e graça irresistíveis, dança como um animal furioso. Uma mestiça. Uma mulata cor de canela e pecado, de sorriso largo desconcertante, cheirando a cio com eflúvios de cumaru. Um feitiço feminino, sinuoso feito serpente, prometendo o paraíso. Requebrando frenética, ela hipnotiza os expectadores e os incita a delírios de gozo quase carnal, arrancando aplausos e gritos rubros, como se brotados do sangue. Sob as palmas cadenciadas, ela vai acelerando, acelerando, prestes a explodir. É capaz de atear fogo às veias dos homens e roubar-lhes a alma pelos olhos. Pode revolucionar o viver e o sentir apenas com um meneio do ventre liso e dourado. É capaz de destruir uma família e recompensar com a loucura. Um demônio, um veneno, que penetra por todos os buracos do corpo, que faz lânguido o mais diligente dos homens, que transforma o mais manso em assassino. Imaginou? Essa, meu amigo, é a Rita Baiana.

Rita Baiana é um dos personagens mais notáveis da literatura brasileira. Filha do realismo naturalista, é escrita com uma riqueza de detalhes visuais e sensoriais incríveis. Forte, apaixonada e politicamente incorreta, é absolutamente impossível não adorá-la. Sedutora e consciente de seus encantos, é maliciosa e faminta de vida, um diabo de saias. É sem dúvidas, a alma de O Cortiço, de Aluízio de Azevedo, embora não seja a protagonista. Ela não aparece desde o começo e nem está presente no fim, mas rouba a cena em sua aparição fulminante. Escrita em 1890, é uma mulher a frente de seu tempo. Ama a quem lhe aprouver, da forma que melhor lhe parecer. É deliciosamente livre e despida de amarras e preconceitos, é como a maioria de nós queria ser. É mulata decidida e generosa que enfrenta a vida de peito aberto, disposta a sofrer e gozar com a mesma intensidade. Fiel aos seus gostos e às suas paixões, a elas se entrega por inteiro.

É o símbolo da brasilidade quente que penetra na alma lusitana de Jerônimo, o português enamorado, e varre toda a nostalgia d'além mar que havia nele. Caído pela mulata, ele abandona mulher e filha, abraça a vida boêmia, contrai dívidas, perde a força moral e chega a ponto de matar um homem com um pedaço de pau. "Isso não é mulher, é uma desgraça", você provavelmente pensará. Mas para ele, o amor da Rita é insubstituível e justifica tudo. Nos braços dela, tudo adquire uma cor fulgurante e fantástica, não dando margem a lamentações, arrependimentos e nem dores. Ele a venera, satisfaz todos os caprichos, arde e morre por ela, se preciso for. Passa por todos os dissabores e tormentas, mas não lhe tirem a Rita, que sem ela não pode mais viver. Como vício destrutivo, como doença, ela é a seiva que o alimenta, a força que o impulsiona. Torna-se cativo por gosto e por vontade.

Rita Baiana é a personificação do melhor e do pior da mulher, com toda a magia e a ruína que lhes é peculiar. Mas não uma mulher comum, e sim uma dotada do orgulho e da beleza da raça negra da qual descende, aliada à ferocidade da mulher pobre que defende seu espaço e seu sustento. Ela transborda alegria e sensualidade, é corajosa, digna, guerreira - até as últimas instâncias, até à violência física - e essencialmente hedonista. Mas o mais marcante nessa mulher, assim como em toda a obra de Aluízio Azevedo, é que Rita Baiana é humana. Passa longe de qualquer heroína convencional da literatura brasileira, sempre tão cheia de Helenas (Machado de Assis) e Marílias (aquela de Dirceu), tão brancas, castas, atormentadas, frágeis, suspirantes. Ela não. Ela ri e se comove com o mesmo que todos nós. Tem seus momentos de egoísmo, de fúria, de mesquinharia, para logo em seguida abrir-se toda em generosidade ímpar. É amiga, companheira, carinhosa, brincalhona, devassa, inebriante. Mulher, personagem e símbolo inesquecíveis.

Lívia Santana
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: Thalma de Freitas, autor desconhecido.

Maçã


Apenas um olhar, é o bastante. Uma simples sugestão é faísca suficiente para deflagrar o fogo que consumirá todos os limites e barreiras. A situação mais inocente é capaz de desencadear pensamentos lúbricos e acontecimentos tórridos. A tentação é serpente insidiosa que ronda incessantemente, acompanhando cada passo da presa, à espreita do menor sinal de fraqueza. O desejo subjacente deixa o ar eletrizado e incita ao pecado. O proibido acena sinuoso com promessas de concupiscência morna e sedutora. O momento decisivo é imperceptível, a presa nunca estaca em considerações sobre ainda ser possível retroceder – até porque, a esta altura, daria qualquer coisa para finalmente transgredir. Não há como perceber o momento exato em que a guarda é baixada e é dado o primeiro passo em direção ao abismo. A ruína chega como picada de inseto venéfico: silenciosa, veloz e urticante, e apenas o princípio do sofrimento. Aparentemente inofensiva, não atrai maiores atenções, nem suscita maiores cuidados, enquanto instala a devastação. Lentamente toma conta de cada veia e cada pensamento, imperiosa, insaciável. Os sintomas são insopitáveis, enlouquecedores. O sono é acompanhado de suores profusos e delírios turbulentos, a vigília é dominada por intensa consumição. Corpo e mente ardem por algo pouco definido, mas imprescindível, que corrói o juízo e pulsa vertiginosamente no peito. Algo que coça, inflama, prolifera por toda parte. Agonia vibrante e entorpecente, fustigando a pele e a entranha, assanhando as fantasias. Uma dor gostosa, clara escura, doce amarga, quente fria. Um oxímoro incandescente e enregelante. Feitiço voluptuoso que aprisiona o pecador e o afunda em embriaguez viscosa e salaz. Dura momentos eternos e inebriantes, mas, o que é quase paradisíaco e quase infernal, se converte em desgraça completa quando a transgressão é revelada. Por mais que o desafio tenha sido suculento e tenha provocado as mais sublimes sensações, a perdição é o destino daqueles que mordem a maçã.


Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Prometeu


Não tivesse eu a consciência incansável a acusar-me sem trégua e nenhum exílio seria tão terrível, nenhuma sentença severa em demasia. Acorrenta-me mais o arrependimento pungente do que os grilhões que me prendem à pedra nua. Desnecessários, aliás, pois meu cárcere eu trago edificado no coração, não há rota de fuga possível.

Certamente são graves os meus crimes. Piores ainda por atingirem o ser mais digno de amor e honradez em que já pus os olhos. Razão teria em chamar-me monstro, o mal que lhe causei ainda se estampa na face. Recordo a vileza com que lhe traí os sentimentos e a confiança e sinto arrepios.
Abri as feridas mais profundas, provoquei dores atrozes. Conspurquei-lhe corpo e alma, envenenei-lhe os sonhos e a língua, destruí as certezas e referências. Fui a causa do vinco de amargura que lhe anuvia os olhos, do ceticismo cinza e estéril que lhe turva as palavras e os sentidos.

Revejo incessantemente suas lágrimas abundantes, transbordando vergonha e mágoa. Presenciei sua agonia e o choque foi suficiente para despertar-me do torpe torpor em que mergulhara. Atingiu-me desespero fulminante, não entendia como pudera cair tanto. Sufoquei de culpa, cambaleei ante a força do amor que me invadiu. Mas então era muito tarde, não havia mais volta.

A pena que me coube foi o degredo e, no cimo da montanha, expio meus pecados. Meu libelo, repetido continuamente pelo meu algoz, ecoa em meus ouvidos, inflingindo-me tortura impiedosa, causticante. Apenas experimento alguns momentos de alívio quando o abutre – bendito – vem bicar-me o fígado, todos os dias.

Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005.
Imagem: autor desconhecido.

Na Chuva


Durante toda a tarde o vento rodopiou as folhas e as saias, anunciando chuva e, finalmente, na última hora de sol, ela chegou. Bendita. Sensação de liberdade e prazer indescritíveis. Como se energia liquefeita penetrasse em meus poros e iluminasse-me a entranha, sacudindo a vida em minhas veias. A forma perfeita de lavar a mente e o espírito, ficar leve como as nuvens depois que precipitam. Sob as gotas frias, virei criança de novo. O rosto afogueado, corri pela rua, chapinhei as poças, dancei e rodei, embalada pelo som do meu próprio riso infantil.

Então atentei prum elemento dissonante: eu tinha platéia. Um homem bem mais velho – eu tinha dezesseis – estava parado a alguns passos de mim, indiferente à chuva que ensopava suas roupas claras, olhando-me fixamente. Parecia confuso, chocado até. Sem saber por quê e sem me lembrar que também eu estava encharcada, proporcionando uma vista privilegiada através do meu vestido leve, me aproximei.

O olhar escuro, mesmo ligeiramente surpreso, ardia e hipnotizava, era impossível me afastar. Era alto, forte, tinha a pele morena e os cabelos pretos, entremeados de poucos fios prateados. Não chegava a ser bonito, mas era atraente. Ficamos nos encarando por alguns minutos, dissociados da lógica, até que ele fugiu, correndo sob a chuva, antes que eu pudesse esboçar qualquer gesto para detê-lo.

Nunca o tinha visto, não sabia nada sobre ele, sequer tinha ouvido-lhe a voz, e quisera detê-lo. Por quê? E por que ele tinha fugido? No fundo, era o que mais me intrigava. Sabia que o arrepio que tinha sentido na nuca nada tinha havido com a chuva. Aquilo tumultuou a minha noite, fazendo-me rolar na cama, insone e ansiosa. A sensação de ser observada, devassada pela curiosidade de um espectador nebuloso, permanecia e impedia-me de conciliar o sono. Além disso, o olhar do desconhecido continuava a me perseguir, chamando-me.

Passei os dias que se seguiram vasculhando a vizinhança tentando revê-lo, inutilmente. Ele tinha sumido, como se tivesse se escondido. Passei a esperar ainda mais ansiosamente que chovesse, na esperança dele aparecer e, realmente, o vi mais algumas vezes, sempre em dias de chuva e sempre fugindo de mim quando eu tentava me aproximar.

Aquilo já era idéia fixa, eu tinha que encontrá-lo, saber quem era, dar vazão à impressão tão forte que me causava. Estava obcecada por um estranho e senti crescer um desejo absurdo por ele. Meus sonhos crepitavam lascivos, sentia na pele o toque forte das mãos dele. Esfregava-me contra os lençóis tentando aplacar a sede através de gozo solitário, a agonia quase insuportável.

Dias depois, o sol já tinha se posto e o céu ia gradativamente assumindo um azul mais escuro, quando senti as primeiras gotas. Tinha me sentado na calçada, sentindo a chuva sobre a pele trêmula, imaginando se ele apareceria, quando o vi a alguns metros, olhando daquele jeito intenso, quase dolorido.

Em vez de tentar aproximar-me, despi o vestido molhado e encarei-o, desafiando-o a ser capaz de ir embora de novo. Hesitante, ele veio até mim e ajoelhou-se no chão aos meus pés, o olhar ainda atormentado. “Você é só uma menina”. Então era isso. Eu ri e arrematei: “Você não sabe de nada”. Coloquei a mão dele sobre o meu seio pequeno e senti a resistência dele ir por terra. Aquela disputa sob a chuva eu tinha vencido.

Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.

Encenação (ou Pedestal)


É chegada a hora de encerrarmos a temporada, o público demonstra sinais inequívocos de enfado, toda a companhia está extenuada. A platéia já se tornou tão exígua que os parcos aplausos ressoam quase zombeteiros pelo vazio da penumbra...

(suspiro... ele esfrega os dedos pelo cabelo, num gesto confuso e furioso... abre um novo arquivo e começa a digitar febrilmente)

A angústia que me assola é tanta que nada consigo escrever além de textos melancólicos e desesperançados. Sinto uma sombra escura e pesada envolvendo-me o coração, que já não sabe como é não estar oprimido. Ando pela casa, sorumbático, suspirando de saudades, tentando me esconder dos olhos grandes, escuros e tristes dela.Ela. Ah, como eu a queria de volta! Daquele jeito doce que era, e que me emocionava por vezes quase até às lágrimas. O sorriso tão claro e franco, o olhar exultante que me dirigia toda vez que eu chegava, o encaixe perfeito do seu corpo frágil em meus braços. Ela era como um pássaro canoro, enchendo de vida e alegria a casa e a vida. Tudo parecia perfeito, eterno, eu nunca tinha sido tão feliz. E agora isso.

Quem porventura lesse estas linhas pensaria estar diante do desabafo de um viúvo ou talvez de um amante abandonado. Sinto-me um pouco como ambos e, no entanto, ela está bem ali, ao alcance de minhas mãos. E não sinto a menor vontade de tocá-la. Na verdade, não gosto mais dela. A cada dia gosto menos, se é que é possível, e sinto o enlevo escapar-me por entre os dedos lentamente. Eu a amo - oh, sim, amo muito! - por tudo o que vivemos juntos, tudo o que já fomos, o que já tivemos. E não temos mais. Já não consigo sentir ternura pelo som da sua voz ou da sua risada, como antes. Às vezes sinto mesmo indiferença. Seus olhares carinhosos já não significam nada, não são capazes de me tocar, e qualquer declaração de natureza amorosa resvala por mim sem produzir nenhum efeito.

Não que haja repulsa - ainda - apenas não me importo, a presença dela já não faz diferença. E ela sente isso. Como não sentiria, se sempre demonstrei paixão e a tratei com todos os mimos e agora, quando me dirijo a ela é para censurar-lhe por algo? Ela sente e vejo que não sabe como agir. Alterna entre crises de ressentimento e tentativas vãs de tornar ao que éramos antes. Está perdida, e nem mesmo me apiedo dela. Acuada, se fecha cada vez mais, o que tem o condão de me irritar e entristecer. Como é duro presenciar o fim gradual de tudo que era tão belo e incrível, como é terrível me sentir impotente! É tão estranho gostar menos de alguém à medida que se conhece... Quanto mais familiar ela me parece, mais me desagrada. A forma com que ela encara o mundo não se ajusta à minha, sou obrigado a reconhecer. Não é nem de longe a companheira que eu gostaria e não entende o que tento lhe dizer. Interpreta sempre da pior maneira, como se eu a estivesse atacando e, por isso, vive se defendendo. Tenho-me sentido numa trincheira. Basta que eu diga algo que possa soar ofensivo ou que a contrarie para que a batalha seja desencadeada.

Como é possível gostar menos a cada dia da pessoa que se ama? O conhecimento está matando meu amor? Por quê? Aquela a quem realmente amo, por quem me apaixonei, seria apenas uma imagem, uma idealização? Teria ela desempenhado um papel ao nos conhecermos? Teria me enganado? Ou eu mesmo o fiz? Procurei alguém que fosse aquilo que eu queria, que preenchesse as minhas expectativas? Estarei me sentindo frustrado agora por perceber as limitações da atriz que escalei para o papel? Quis esse tempo todo que ela fosse alguém que não é na verdade?

Mas só queria que ela fosse como antes! Tão linda, meiga, esperta, desejável e dócil!...Por que tinha também que ser egoísta, teimosa, suscetível e impiedosa com os meus defeitos? Por que ela tinha que me avaliar e me reprovar? Por que não podia continuar a me olhar daquele jeito apaixonado? Era tudo tão bom antes! Ela só precisava entender que tinha que se amoldar a mim para nos encaixarmos, para vivermos em harmonia! Como foi que a paixão se metamorfoseou em constrangimento? Por que agora o olhar dela é sempre tão triste? Onde foi que tudo ruiu? (...) Não sei. Fico pensando se há o que salvar ou se não passou de ilusão que durou tempo demais. Por que temos essa relutância em admitir o fracasso? Talvez seja o pânico de ver o tempo passar, de me sentir envelhecer e os relacionamentos falidos irem-se sucedendo inexoravelmente. Talvez a sensação de que nunca na verdade dará certo, que é impossível, estou fadado a ficar só. Que é tudo inútil e o melhor é desistir.

(suspiro)

A verdade é esta, não gosto mais dela, da pessoa que se tornou - ou que sempre foi e eu nunca enxerguei. Por que sempre temos que nos perder de quem amamos? Meu falecido pai, aquele amigo de infância que era eterno, cada mulher que já amei. Todos perdidos, inalcançáveis. Acho que estou até me acostumando. Ela me disse outro dia que a minha frieza a assusta, e acho que estou mesmo frio. Distante, indiferente, cético. Sei que ela julga impossível que seja obra de alguma rival - tenho mesmo que admirar a segurança dela - mas de certa forma está enganada. Realmente uma outra mulher ocupa o meu pensamento: aquela que ela costumava ser. É esta que tem deixado perdido o meu olhar, que tem povoado os meus sonhos. Fico me perguntando se ela existiu mesmo ou se foi criação minha. E em alguns momentos chego a ter a certeza de que sim, eu a criei. Era perfeita demais.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
Imagem: autor desconhecido

THE SHOW MUST GO ON


...então tudo morre.

Porque pra morrer basta estar vivo, e pra acabar, basta ter começado. E tudo o que passou fica na memória, enquanto esta não teimar em banir as lembranças pro fundo escuro do inconsciente...

Agora fecha-se o pano e apagam-se as luzes da ribalta. Os expectadores vão para casa.

E ninguém que testemunhou o espetáculo irá sequer suspeitar de que nos fundos, num camarim sórdido, em frente a um espelho lascado e marcado pela ferrugem, a atriz fita com os olhos vermelhos e inchados a própria imagem borrada pela maquiagem escura, enquanto chora silenciosamente, sofrendo, lamentando mais uma vez, o fim da história.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005.
Imagem: autor desconhecido.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Contemplação

A tarde está caindo modorrenta e Victor lê o jornal, como sempre faz. É engraçado observá-lo interagindo com o texto, descobri que posso passar horas e horas fazendo isso. Nunca é monótono, tal é o sortimento de caretas e trejeitos, tão peculiares a ele. Arqueia e franze as escuras e espessas sobrancelhas e meneia a cabeça ora de cima para baixo, ora dum lado para o outro, e de novo para cima e para baixo. Resmunga baixinho, estala meia dúzia de muxoxos, cofia a barba inexistente, retorce sardonicamente os lábios rosados. Quase rio, cá com meus botões, ao assisti-lo nesse ritual diário que conheço tão bem, cada expressão de seu rosto bonito, cujas nuances posso ler tão claramente.

Vejo-as desde que o conheci, há anos, quando tentou me assustar com suas tristes idéias céticas para que eu me afastasse. Naquele dia atirou-me ao rosto um punhado de sofrimento íntimo mimetizando agressividade e lembro-me da fúria de suas palavras que mal podiam ocultar tanta angústia e solidão. Permanece muito viva a lembrança do enternecimento que senti então, uma vontade imensa, imensa de abraçá-lo e dizer-lhe que nada era tão ruim. Ainda vejo a surpresa em seu rosto quando, a despeito de seus esforços, eu lhe sorri e garanti que ele não me metia medo e que estava disposta a ficar. Passei no teste, eu acho, ele foi perdendo a reserva comigo e nos tornamos amigos, muito amigos.

Às vezes ele parecia carregar o peso do mundo nos ombros e me olhava tão, tão, tão dorido. Lembro-me de como o amparei diversas vezes nos braços enquanto chorava, tentando aliviar sua dor e mostrar que havia motivo para sorrir e acreditar. Ele sempre foi muito frágil e imensamente forte, num momento era a imagem da tristeza e no seguinte, os olhos brilhavam e brilhavam, como os de criança. Ainda agora ouço a risada debochada, contagiante, acompanhada de gestos febris que mal conseguiam traduzir seu contentamento ou sua excitação.

Recordo as madrugadas – tantas – que passamos em claro, bebendo e falando, falando, falando, sobre vida, arte, música, gente, e todos, todos os tipos de idéias e fantasias, as quais por vezes mesclavam-se com a realidade, conferindo ao mundo um brilho feérico, único. Construíamos histórias mirabolantes que eram extensões de nós mesmos, alimentados por nossas almas, sonhos, medos e desejos.

Desejos. Lembro-me dos olhos dele, fulgurantes, repletos deles, fitando-me num minuto e, no seguinte tinha as mãos no meu corpo, todo ele vibrando, ardendo, dissolvendo e me levando junto, prum mundo de formigamento. Recordo o gozo ruidoso, abundante, desfalecente, ele arregalava os olhos, desmesurados, depois de alguns momentos, como se procurasse compreender algo, como se a ordem do mundo tivesse sido invertida e ele demorasse algum tempo para encontrar sentido nas coisas novamente. Depois ria, primeiro de mansinho e depois com maior e maior intensidade, às vezes quase até às lágrimas e concluía que éramos incríveis juntos.

Então ele foi para outra cidade estudar e o mundo pareceu se partir em inúmeros pedaços, a vida sem ele por perto era um inferno e ele me dizia nas cartas que estava enlouquecendo, de saudades e de tristeza, assim como eu. Lembro que um dia liguei apenas para contar sobre um filme bobo que tinha assistido e fomos ficando, falando, falando, falando, não podíamos mais parar e choramos juntos, desesperados pela presença um do outro. Ainda o vejo descendo do ônibus na rodoviária quando voltou, esfacelado por abrir mão do sonho e eufórico por estar de volta, por estarmos novamente juntos, e juramos não mais nos separarmos.
E lembro quando nos separamos, as palavras duras dele, a mágoa e a raiva estampada nos olhos, a sensação asfixiante de encanto quebrado, membros quebrados, vida quebrada, ruída. E aprendi não sei como a viver sem contar tudo para ele, sem vê-lo todos os dias, sem ouvir a risada tão viva. Aprendi a viver amputada e sofri tanto que pensei morrer a cada hausto de ar que entrava pelas narinas. Encontrávamo-nos e o olhar dele era constrangido, doloroso, e o nó na garganta vinha com força, dilacerante, turvando a vista, molhando as mãos.

Os dias passaram, passaram e, um dia, eu me lembro, ele me olhou de um jeito diferente. Começamos um papo tímido, eu tremia, ele prendia a respiração, o que se falou se perdeu nas curvas da minha memória, mas ali reatamos a amizade, frágil, ansiosa, sofrida, a princípio, que foi-se solidificando gradualmente. E de novo, éramos amigos inseparáveis, que riam e falavam, falavam por horas a fio e pela noite adentro, compartilhando idéias, discutindo bobagens e se amando mais que nunca, como sempre é da segunda vez, depois que quase se perdeu aquilo que se amava.

Conservo a nítida lembrança dessas noites e desses dias, quando pude aprender a conhecer cada franzir de sobrancelha, cada sorriso do Victor, que está tão bonito ali, sentado no sofá, se dando conta nesse momento da minha presença aqui nesse canto, olhando-o com olhar perdido e um sorriso bobo nos lábios. Olha-me com expressão de interrogação, faz um gesto para que eu me aproxime e me puxa para o colo, perguntando “Que foi?” Eu sorrio “Nada.” Então ele também sorri, dá-me um beijo suave na ponta do nariz e conclui “Casei com uma mulher maluca.”

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
imagem: Vickie Davalos.

Mais Uma Vez


- Sonhei com você a noite passada. – a voz veio rouca pelo telefone.

- Mesmo? – ele arqueou a sobrancelha – E como foi o sonho?

- Úmido. – pronunciou lentamente.

Susteve a respiração. Como sentia a falta dela! A boca ficou seca, hesitou, receando romper o encanto. Após uma pausa, ela suspirou:

- Quero você.

Era o eco do que ele sentia, mas ficou surpreso que ela o dissesse. Tinham se amado muito, apaixonadamente. Pareciam perfeitos juntos. Mas nem só de amor vive o amor – assim descobriram. Embora ainda se quisessem tanto que doía, separaram-se depois de diversos desencontros. Sofreram sozinhos por alguns meses, e acabaram retomando o contato. Falavam-se sempre ao telefone, sobre quase tudo e quase nada. Incidentes, sucessos, dúvidas, mágoas. Só não davam voz àquilo que ainda fazia acelerar a pulsação de ambos, ao mero som de uma palavra banal como “alô”.

Combinaram o encontro às dez, num lugar público. Ele encostou o carro, ela entrou apressada. Cada ato era recheado com sabor clandestino. Encararam-se por alguns segundos eternos. Expectantes, a respiração irregular. Estavam ali de novo, depois de tanto tempo. Não sabiam bem o que faziam, mas sabiam que era impossível não fazer. O carro moveu-se lentamente pelo trânsito movimentado, enquanto conversavam sobre qualquer coisa desimportante. Não se dirigiam a nenhum lugar específico, tanto era o prazer de apenas estarem juntos. Não era racional, não fazia sentido, existia um milhão de motivos para que seguissem rumos distintos. Mas amor é teimoso e não morre tão fácil, por mais que se queira, por mais que o mate todos os dias.

Riam de alguma bobagem quando passaram em frente a uma profusão de horríveis luzes verdes, onde estava escrito “Motel Selva”.

- Vamos? – propôs, maliciosa.

Entre risadas, ele concordou. Por mais grotesco que fosse, aquela noite era mesmo uma grande travessura e detalhes assim só poderiam torná-la mais excitante.

Pegaram a chave na portaria – aonde escolheram o “Leopardo” entre outros felinos disponíveis – e seguiram para a suíte. Acesas as luzes, o ambiente era inusitado. Paredes pintadas de lilás com algumas manchas, pretendendo decoração temática, a cama com imensa cabeceira ornamentada com cetim azul berrante, espelhos no teto e em toda parte, luzes alaranjadas e um sortimento incrível de acessórios eróticos sobre uma mesa. Deliciados, concordaram que o ambiente era perfeito. Não queriam um ninho de amor, quanto mais vulgar, melhor.

Serviram-se no frigobar – duas cervejas – e brindaram. Não havia pressa. Ele tirou do bolso uma caixinha, ela fitou-o, curiosa. Eram dados, daqueles que dizem o que fazer. Beijar-lamber-morder-massagear-beliscar-interrogação. Boca-barriga-pés-nuca-orelha-interrogação. Era um desafio, doce agonia, a cama serviria como mesa. Jogaram uma, duas, três vezes. Mordida na nuca. Beijo na orelha. Lambida no peito. Na quarta – beijo na boca – não puderam mais e agarraram-se, sôfregos, mal conseguindo livrar-se das roupas. Gozaram como loucos, ruidosamente, mal ele a penetrou. Caíram de lado, arquejando, trocaram um olhar dolorido. Como tinham podido se separar, se era tudo tão certo? Como se separariam de novo, depois daquela noite? Procuravam a resposta à pergunta mútua um nos olhos do outro e então perceberam. Não se separariam. Era um recomeço, uma nova chance. Com as emoções afloradas, mergulharam um no outro, mais uma vez. A noite seria longa. Infindável.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
Imagem: autor desconhecido.

Atrofia

- Oi, que saudades...
- Eu também.
- Tudo bem? (pergunta de praxe)
- Tudo certo. (resposta de praxe)
- Senti falta de conversar com você.
- Lamentei que tenhamos nos distanciado.
- Eu também. Mas foi preciso, estava me machucando.
- Nunca quis machucá-la.
- Sei disso. Por fim eu entendi.
- E o que você entendeu?
- Que estava além de você corresponder ao que eu queria. Eu estava pedindo o que você não podia dar. O único jeito de me desvencilhar de você foi percebendo que por mais que eu estivesse apaixonada, tudo não passava de energia dispendida em vão, nunca ia dar em nada.
- Você não se apaixonou por mim, eu era apenas uma novidade que a estimulava mentalmente.
- Na minha idade tudo é paixão.
- Na minha a paixão já morreu.
- Então você é um ancião embalsamado de quarenta anos?
- Não é isso.
- Então explica.
- Acho que sou um pouco cínico para a paixão. Ademais, é melhor conservar o controle.
- Não concordo com isso.
- Quer dizer que paixão é algo bom?
- Depende.
- Odeio oligossílabos. Fale até cansar ou não falamos.
- Usando uma expressão bem lugar-comum, paixão é um mal necessário.
- Ah, é? Convença-me.
- Sabe muito bem que não se pode convencê-lo de nada que já não esteja predisposto a aceitar.
- (sorriso) Você entendeu. Argumente.
- Já leu “Admirável Mundo Novo”?
- Já. Qual o ponto?
- SPV. Sucedâneo de Paixão Violenta, uma vez ao mês. A descarga de adrenalina provocada pela paixão é essencial ao organismo.
- ...
- Você pode até não entender, mas a maioria das pessoas não se sente feliz vivendo num mundo morno, cinza.
- Aí já está extrapolando. Meu mundo não é cinza porque não estou apaixonado.
- Não me referi a isso. Não estou falando de se vincular necessariamente a outra pessoa. Estou falando de marasmo, de falta de entusiasmo pela vida, de tédio, de solidão, de frustração. Estou falando de acordar todos os dias, ao lado de alguém que não ama, ir prum trabalho que não o desafia, ficar preso no trânsito dessa cidade infernal, reprimir seus instintos e desejos até o limite, sem ter nada pra compensar. Entendeu?
- Você está diferente.
- Diferente como?
- Mais dura.
- Não estou sendo dura. Só não me importo mais em ferir o seu ego. Incomoda?
- Não. Não quero que seja doce, pode ferir.
- Nem sei se consigo te ferir...Você parece tão empedernido, às vezes.
- Não sou empedernido.
- Apenas frio, não é?
- (sorriso) Um pouco. Condicionamento.
- Como era mesmo o papo dos oligossílabos?
- O que quer que eu diga?
- Conta uma coisa...
- Pergunte.
- Por que você não muda a sua vida?
- Não tenho grandes ambições. Não a esta altura da minha vida.
- Quer parar com isso? Essa sua mania de se referir a si mesmo como um moribundo centenário me deixa louca.
- Eu me sinto velho. Ultrapassado, até. Uma aberração.
- O que há em você de aberração são só os seus fetiches. (sorriso) Afora isso, você se sente velho porque é um cético mal humorado, anti social e sombrio, que olha pro resto do mundo morto de enfado.
- Como você está eloqüente hoje!
- ...
- Pode ser que você tenha razão.
- Então responda à minha pergunta.
- Eu gosto da minha vida.
- Não, não gosta.
- A questão é que a minha vida é essa. Apesar de tudo, essa é a minha realidade. Não posso ir embora. Já tentei e descobri que a minha raiz está entranhada muito fundo nessa terra, que fora dessas paredes fico desorientado, sem chão. Não amo mais a minha mulher, mas não sei como ficar sem ela. Meu trabalho é tedioso, mas é o que eu faço. Por mais que eu fantasie sobre isso, não vai haver nenhuma mudança. Não há, na verdade, nada melhor pra mim aí fora.
- E por que não me disse isso antes?
- Eu não costumo dizer isso a ninguém.
- Você parece muito diferente do homem que eu conheci.
- Na verdade, não. Eu vivia recluso já naquela época, apenas não gosto muito de alardear essa condição.
- Mesmo a porta da gaiola estando aberta você não sai?
- Não é me fustigando que você vai me fazer sair da gaiola.
- E por que não sai?
- Aqui é seguro. Por mais que pareça sofrido...
- Você é que faz parecer sofrido.
- Eu sei que sim. Mas apesar das minhas muitas reclamações, não é tanto assim. Aqui é confortável, seguro, familiar. Entre essas grades estive a vida toda, aqui aprendi tudo o que eu sei. Aqui estão as minhas referências e as minhas lembranças, boas e más. Por aqui passaram todas as pessoas que já foram importantes pra mim. Tive muitos momentos felizes. Infelizes também, mas é aqui que eu sou eu, é desse jeito que eu sei ser eu. Aí fora pode ser sedutor, pode parecer que há possibilidades infinitas, mas não passa de ilusão. Não tenho anticorpos pro que ainda não conheço e não tenho certeza se posso produzi-los. Por mais que eu quisesse, não sei mais voar e tenho que aceitar isso.
- Que coisa triste. Você vive um personagem.
- De certa forma sim.
- Eu entendo. Quer que feche a porta de novo?
- Não, deixe recostada. Assim ao menos eu tenho a ilusão de que não saio porque não quero.
- Mas é isso mesmo.
- Não. Não saio porque minhas asas não podem mais.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
Imagem: autor desconhecido.

Privação de Sentidos


Encontrei-a noutro dia, por acaso, e a surpresa deixou-me estático. Ela sempre fora linda, eu me lembrava muito bem, mas nada poderia ter-me preparado praquela exuberância. Vestindo vermelho, apareceu do nada e enlaçou-me o pescoço, exclamando docemente o meu nome. Fui envolvido pelo perfume acre, com cheiro de mato, de vida, de calor vaporoso. Cheiro que dava vontade de morder. Que me invadiu as narinas e tomou o corpo todo, feito droga poderosa. O contato com a pele morena equivaleu a descarga elétrica, eriçando-me os pêlos e retesando cada músculo. Lembrei de sentir o corpo sinuoso sob o meu, de lhe arrancar gemidos urgentes, de me dissolver dentro dela. Pareceu que nós lembrávamos da mesma coisa. Sorrindo maliciosa, deu um passo atrás e encarou-me com os olhos escuros e profundos, onde tantas vezes tinha me perdido. Umedeceu os lábios lentamente com a língua, desafiando-me. Ela sempre tivera consciência do próprio poder e queria a confirmação de que eu continuava cativo, depois de todo aquele tempo. Aproximou-se e acariciou minha barba com a mão macia. Senti meu coração migrar do peito pra virilha, latejando dum jeito quase doloroso. Fechei os olhos por um instante, tentando me recordar do motivo pelo qual tínhamos terminado. Em vão. E ainda tentava lembrar quando ela tomou meus lábios com gana, fazendo-me esquecer até de quem eu era. O motivo que fosse era insignificante. Só importavam ela e o meu coração. Latejando.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005

Imagem: Ana Pereira.

sábado, 12 de julho de 2008

Domingo


Abro o olho e olho o teto o sol lá fora cada vez mais quente porra quem abriu a persiana? ai que preguiça um bocejo comprido só mais uns minutos não vão fazer mal tiro um cochilo rápido acordo babando no travesseiro ai minha cabeça tem jeito não marquei com a Gisa tenho que levantar chinelo no pé saio arrastando os calcanhares lavo o rosto enfio sunga e camiseta esfrego os olhos xô sono! uma xícara de café pego o jornal chamo o elevador bom dia Seu Geraldo calçada vou andando preguiçoso caramba quase pisei no cocô de cachorro desvio no último momento gente porca! a rua movimentada os carros buzinam sem dó da minha ressaca porra que dor de cabeça o sinal tá aberto do jeito que eu tô morro atropelado nem arrisco atravessar espero o sinal verde abriu vou arrastando o chinelo até a areia porra como o sol tá forte! tudo é claridade sol sol sol a areia tá quente pra caramba vou andando procurando a Gisa que não tá em lugar nenhum vai uma cadeira? não obrigado mas tá baratinho só dois reais! não obrigado eu busco rapidinho! saio andando antes que o cara me apareça com a tal cadeira arranco a camiseta hum que gatinha desvio duma menina brincando na areia porra aonde tá a Gisa? uns caras batendo bola perto de umas garotas toca! ai! porra desculpa! viu o que tu fez? tá limpo na boa! vejo a Gisa deitada na esteira e me jogo ao lado dela Tu tá atrasado ela me olha por sobre os óculos escuros Porra nem sei como cheguei em casa ontem! minha cabeça tá doendo pra caralho Vai na água que ajuda Agora não vou tomar um côco ô meu chapa! quanto tá? dois reais! geladinho? geladinho! tá aí valeu! tomei o côco e me larguei na areia disposto a continuar a minha soneca enquanto a Gisa tostava a bunda a gritaria foi aumentando e virando um transe morno amendoim água-de-côco coca-cola água skoll sorvete picolé sacolé biscoito-globo empada-praiana sanduíche-natural queijo-coalho mate guaraná salada-de-frutas camarão bronzeador saída-de-praia pulseirinha tatuagem-de-henna chapéu amendoim água-de-côco coca-cola água skoll sorvete picolé sacolé biscoito-globo empada-praiana sanduíche-natural queijo-coalho mate guaraná salada-de-frutas camarão bronzeador saída-de-praia pulseirinha tatuagem-de-henna chapéu Edu acorda! Hã? Tu tá babando na minha esteira há horas vamos embora Mas eu acabei de chegar! ela tava puta e o sol tava frio eu tinha dormido quase a tarde inteira saí andando atrás dela com o rabo entre as pernas imaginando qual seria o meu castigo ela não ia deixar barato com certeza tudo bem eu merecia tinha vacilado mas ela não precisava ter pegado tão pesado porra não me deixou ver o jogo do mengão.

Lívia Santana.
Uberlândia - julho/2005

Sempre Pode Piorar

Surpresa. Há momentos em que o mero som dessa palavra provoca calafrios. Não passa de um eufemismo safado pra “imprevisto” e geralmente acontecimento inesperado é também inoportuno. Se pudéssemos prever, ao abrir os olhos de manhã, qual o estado de espírito dos astros e entidades que regem o cosmos, com certeza nem sairíamos da cama nesses dias em que tudo parece comandado por um senso de humor diabólico. Acontece de tudo um pouco e sempre dá pra piorar.

Acordei hoje e topei com o dedinho do pé na quina da cama. Toda vez que isso acontece me pergunto – enquanto pulo num pé só pelo quarto – pra que serve afinal o raio do dedinho do pé. E sempre chego à mesma conclusão: não serve pra mais nada além de bater nalgum canto pontudo e matar o infeliz de dor. Eu podia viver tranqüilamente com apenas oito dedos nos pés, porcaria! Mas talvez aí eu batesse o outro dedo, então transformado em último dedinho...droga, de todo o jeito eu saio perdendo!

Depois de bater o recorde em imitar saci e desfiar um rosário inteiro de palavrões cabeludos, misteriosamente o dedo começou a doer menos. Santo remédio. Respirei fundo e me propus a começar de novo. Abri a janela e...chovia. Lá fora estava escuro – às nove da manhã – e o céu ostentava um tom plúmbeo capaz de desanimar a própria Poliana. Ainda assim, resolvi que o dia ainda não estava perdido. Tomei um banho quente, saquei o guarda-chuva e saí à rua.

Nem dez passos depois e um carro à toda velocidade passou, espalhando a enxurrada e me deixando encharcada. Talvez tenha sido um modo dele dizer que não tomei banho direito, vai ver esqueci de lavar atrás das orelhas. Maldito, tomara que aquaplane diante do próximo poste! Voltei pra casa e tornei a sair de roupa seca, já menos animada. Eu devia ter entendido o recado óbvio do universo e voltado pra cama, mas segui em frente – agora era questão de honra! Péssima idéia. Durante o correr do dia fiquei presa no elevador, minha unha quebrou, engasguei com café, o computador travou e a alça da mala arrebentou bem quando eu ia fechar. É, ainda tinha isso: eu ia pegar um avião.

O vôo, marcado pra sair às 19:50 do Rio, atrasou para às 20:30. Até aí normal, quem quer que já tenha viajado de avião ou que conheça a Gol ao menos de nome, sabe que nunca sai na hora mesmo. Sem me incomodar, enfiei o nariz num livro policial e o tempo passou sem que eu visse. Como o tempo estava medonho, pegamos turbulência entre Rio e São Paulo – o que já era de se esperar. Os passageiros se agarraram nas poltronas, teve gente rezando e as aeromoças tentavam andar pelo avião sem cair em cima de ninguém. Uma cena grotesca, absolutamente hilária, razão pela qual comecei a rir – baixinho, cá com os meus botões - e, não sei por que, teve gente me olhando feio. Ora, era engraçado mesmo! Medo de morrer? Que nada, se fosse a hora, não ia ter reza que segurasse o avião no ar! E não dava pra acreditar que eu era tão azarada assim: tanto avião pra cair e ia ser justamente o meu? Ah não! Não ia cair e pronto.

Dito e feito, desembarquei em Congonhas sã e salva pra fazer a conexão pra Beagá e o aeroporto estava intoleravelmente cheio. Aí sim eu entrei em pânico, tenho horror a ajuntamento de gente. Arre! Procurei um lugarzinho e me sentei, procurando me resignar. Dessa vez estava previsto pra sair às 22:10 o avião. Às 22:30 anunciaram aos “prezados passageiros” do meu vôo que não tinha sido possível o avião chegar até àquele aeroporto por causa do intenso tráfego aéreo e que íamos ser transferidos pra Guarulhos, com previsão de finalmente embarcar por volta da uma da madrugada.

Já teve a sensação de que um monte de gente caía fulminada à sua volta? Pois foi o que aconteceu. Por todo o saguão ecoou uma exclamação indignada em uníssono dos pobres passageiros, totalmente desanimados. Corri em busca de um telefone e os três primeiros que tentei estavam com defeito, não completavam a ligação nem à custa de pancada. Nessa hora eu perdi um pouco a minha fleuma, confesso. Que porcaria, oras, tem que acontecer tudo no mesmo dia? Entramos no ônibus pra Guarulhos e de cara o motorista foi apagando a luz, me forçando a guardar o livro – responsável pela minha sanidade até ali. Saco. Não dava pra ver nada da janela e descobri que dormir era impossível, porque sentados nas poltronas da frente estavam o Tonto e o Mais Tonto.

Eram dois sujeitos de terno e gravata, com uns trinta e poucos anos, absolutamente estúpidos. Percebia-se que eram advogados, mas de que espécie eu nem imagino. Sei que não os contrataria em hipótese nenhuma, pois não há como me convencer que um profissional que diz “pobrema” mereça algum crédito, a menos que seja peão de rodeio. Além de literalmente estropiarem a língua portuguesa, falavam com um sotaque carregado e horroroso, que tinha que melhorar muito pra ser considerado “mineiro”. Sotaque é uma coisa complicada, eu detesto quase todos – à exceção do baiano e do paraense. O carioca começando a frase com “porra” e exagerando nos esses pronunciados com som de xis, o paulistano com a fala cantada entremeada de “meus” à torto e à direito, o mineiro com o diabo do “uai” e da terminação única pra tudo: “im”. Argh!

A discussão da dupla era interminável e totalmente desprovida de argumentos. Repetiam incessantemente as mesmas coisas, num tom cada vez mais histérico e gargalhavam cada vez mais alto. O ônibus inteiro estava à beira da loucura quando chegamos ao destino, e eu só conseguia pensar que se entrasse no avião e estivesse há menos de dez poltronas de distância daqueles idiotas eu surtaria de vez, sairia gritando e ai da aeromoça que tentasse me segurar!

Sentada na sala de embarque, eu esperava que chamassem finalmente o vôo, desesperada pra chegar em casa. Embarcaríamos à meia noite. Quando finalmente anunciaram o embarque, eu quase chorei. Explico: o destino final era Beagá, com escala em Uberlândia – onde eu ficava – mas o aeroporto desta estava fechado por causa do mau tempo e era possível que não pudéssemos descer e tivéssemos que seguir direto e pegar outro avião pela manhã pra voltar.

Já com os nervos em pandarecos, investimos sobre o balcão da Gol e crivamos o atendente de perguntas, às quais ele respondeu com grosseria e pouco caso. Faltou dizer “foda-se, não é meu problema”. Sem alternativas, embarcamos assim mesmo e, dessa vez eu me juntei aos que rezavam – para que o aeroporto abrisse.

Felizmente, não estava sentada perto da dupla verborrágica, mas em compensação, tinha uma menininha maldita vestida de rosa no banco de trás que não parava de chutar a minha poltrona. Quase fiquei com escoliose de tanto tranco nas costas. Olhei algumas vezes pra trás, implorando pra mãe fazer alguma coisa, mas foi em vão. Sabe aquele tipo de mãe que faz cara de paisagem enquanto o filho inferniza a vida de alguém? Essa mesma. E quando resolveu tomar atitude foi ainda pior: “ô, minha filha, não faz isso!” – de um jeito mole, com cara de quem tava achando graça da pestinha. Fervendo de raiva, aproveitei um momento em que a omissa estava às voltas com o serviço de bordo, coloquei o rosto entre o espaço das poltronas e fiz uma careta medonha pra garotinha. Ela arregalou os olhinhos e não deu mais sinal de vida até o fim da viagem. Rá-rá. Ao menos uma vitória!

Sobrevoamos Uberlândia por alguns minutos e conseguimos autorização pra pousar, graças aos céus. Cambaleei escadinha abaixo e, por um momento, temi que a bagagem tivesse extraviado, seguindo o padrão do resto da viagem. Felizmente as malas estavam lá e meu pai também, esperando. Cheguei em casa morta. Caí na cama prometendo a mim mesma que ia começar a ler horóscopo.
Lívia Santana
Uberlândia - junho/2005

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Enquanto Você Dormia


Três da madrugada e Rita se encolhia contra a cabeceira da cama, o quarto iluminado apenas pelo reflexo da televisão ligada. Os olhos ardiam, a cabeça pesava, mas continuava segurando o controle remoto, mudando distraidamente de canal, sem procurar por nada na verdade. O ruído provocado pelo ronco do Chico, deitado ao lado dormindo com a boca aberta, a impedia de pegar no sono e, a cada segundo que passava, a enchia de uma angústia que só aumentava.

Mudou de canal e a televisão mostrou um palestrante de voz monótona, falando sobre trabalho. “O trabalho é que impulsiona o homem. Investimentos, negociações, desafios, competições, lucro, realizações. O homem foi criado para trabalhar e nessa tarefa ele se esmera, se empenha, se esgota até”. Rita riu consigo mesma, com amargura. “É, o trabalho é que move o homem. Mas o trabalho também move a mulher – geralmente na direção de um homem que trabalhe menos que o dela”. Olhou para Chico que roncava cada vez mais alto, exausto do dia de trabalho e teve vontade de chorar.

A vida deles era um inferno. Ele estava tão concentrado em trabalhar, crescer, ter sucesso, ser o melhor, que se tornava cada vez mais ausente e aéreo. Frio, quase indiferente. O pensamento sempre longe, tramando a próxima ação, prevendo reações, planejando. Enquanto ela, Rita, cansada de procurar pelos olhos fugidios do marido, se deitava e assistia à televisão durante horas a fio, incapaz de adormecer, sentindo-se absurdamente vazia. Frustrada, ferida por ser relegada a segundo plano.

O ressentimento pelo tom de voz impessoal, pelo desinteresse por qualquer outro assunto que não fosse o trabalho crescia. Ela se aborrecia ouvindo-o descrever duas, três, cinco vezes o mesmo problema, o mesmo empecilho, a mesma transação. E quando tentava conversar, pedir, demonstrar alguma contrariedade com a ladainha, ele se irritava, acusando-a de falta de companheirismo.

Rita se perguntava, cada vez com mais freqüência, o que é mesmo que estava fazendo ali.

Não conseguia reprimir a sensação de ser inútil, a não ser para os momentos em que, tomado de lubricidade, Chico a procurava entre os lençóis, não se importando se estava dormindo ou se estava disposta. Nesses momentos é que se sentia mais inútil e idiota, ele não a desejava, apenas desaguava nela suas necessidades. Sentia-se prestes a enlouquecer.

Levantou-se da cama e caminhou em direção ao banheiro, arrastando os chinelos, sentindo-se tão arrasada que sequer conseguia endireitar os ombros. Parecia que o peso do mundo vergava-lhe as costas. Acendeu a luz, tirou a roupa e se olhou no espelho. Era jovem ainda, nem atingira os quarenta e vinha se sentindo lixo. Os olhos estavam fundos, o rosto abatido. Mas o corpo era bonito, a cor dos cabelos castanhos era viva, natural, os lábios eram cheios e rosados.

Tocou a própria face, lembrando como os homens costumavam achá-la atraente, o quanto já tinha sido feliz, bonita, amada. E agora? Será que ainda podia?

Pensou no rapaz que a abordara no supermercado naquela mesma tarde. Tão jovem, e tão galanteador. Estaria ele sendo sincero? Outro homem poderia querê-la de verdade, dar-lhe valor? Ah, como desejava inspirar o desejo de um homem novamente, como doía a indiferença do marido!

Suspirando, entrou sob a água mais quente que podia suportar, como se procurasse lavar de si toda a dor, a tristeza, a confusão que vinha sentindo. Esfregou-se vigorosamente, sentiu os músculos relaxarem.

Trinta minutos depois, saía de dentro do boxe para o banheiro enfumaçado sentindo-se bastante melhor. Limpou o embaçado do espelho com a mão molhada, e surpreendeu-se com a própria imagem. Os olhos, antes embaciados, agora brilhavam e as faces estavam coradas. Ante o inesperado, riu satisfeita para si mesma no espelho, notando mais outra coisa: o rosto ainda fazia covinhas quando sorria!

Sentindo-se leve como há tempos não sentia, Rita enxugou-se e passou ao quarto, parando diante do marido, que agora babava pelo canto da boca, espalhado na cama toda.

Repentinamente, a mágoa que vinha alimentando contra o Chico se dissipou e deu lugar a uma intensa sensação de pena, mesclada a alívio. Ele era tão infeliz e nem se dava conta! Era sozinho, não tinha amigos, nem filhos, nem prazeres. Será que ainda perceberia isso? Ao mesmo tempo, teve a certeza de que não amava mais aquele homem, não tinha porque continuar ao lado dele. Sentiu-se livre, pronta para viver outra vez.

Abriu o armário decidida e jogou algumas roupas dentro de uma sacola. Dormiria num hotel pelo resto da madrugada – e boa parte da manhã – e, no dia seguinte, viria pegar o resto de suas coisas. Escreveu um bilhete pra que ele não se preocupasse, embora ela duvidasse disso. Pobre Chico. Trabalhava tanto que não tinha nada. E acabara de perder a mulher.

Lívia Santana.
Uberlândia - 07/2005
Imagem: autor desconhecido.

Amigas


Marina é minha melhor amiga, conheço-a a vida inteira. Tenho a sensação de que não tenho lembranças em que ela não esteja. Juntas, crescemos, descobrimos o mundo e formamos quem somos. Meninas, rimos quando rasguei a calça no colégio e mulheres, choramos quando o pai dela morreu. Sabemos tudo uma sobre a outra, guardamos os segredos. Nunca nos afastamos, mesmo quando se tornou namorada do Fábio. É uma mulher linda. Seu riso contagia, sua força arrasta. E quando se sente frágil, vem dormir em casa. Nesses dias ela se deita na cama ao lado da minha, usando pijama de bichinhos e conversamos até tarde, no escuro. Eu a amo muito. Hoje, brigou com o Fábio e estava tão calada que achei que tivesse dormido. Até que senti seu corpo nu, quente e suave, estender-se ao lado do meu. Prendi a respiração e ela me abraçou, nada fraternal. Num segundo infindável pensei em toda a nossa história, antes de me virar pra ela e corresponder ao abraço, abrindo a boca pra receber o beijo lento e molhado.


Lívia Santana.
Uberlândia - 07/2005
Imagem: cena do filme Lost and Delirious.

Tea For Two


Esta tarde bateram à minha porta devagarinho. Um. Dois. Três. Era Tristeza, uma velha amiga. Talvez amiga seja a palavra errada, já que nem gosto muito dela. Mas quando alguém o conhece há tanto tempo e tão bem quanto ela, é difícil chamá-lo por outro nome que não amigo, ainda que impróprio. Acostumei-me à presença dela, é a verdade. Fica sendo amiga, pois. Bateu à porta e convidei-a a tomar chá. Sentamo-nos e houve um silêncio prolongado. Sem constrangimento, sem desconforto. Apenas intimidade, entendimento. Ela sabia que eu não queria falar. Somente fez-me companhia. A noite foi caindo e ela acendeu os abajoures. Sentia-se em casa, tão assídua era naquela sala. Escolheu um disco de blues azul e ofereceu-me o colo, sem dizer palavra. Deixei-a acariciar-me os cabelos por longas horas, até que bateram novamente à porta. Tristeza beijou-me em despedida e abriu a porta, dando passagem a Solidão, meu fiel companheiro noturno, com quem divido a minha insônia.

Lívia Santana.
Uberlândia - 07/2005
Imagem: Bruno Dias.

Possessão


Aproximou-se da cama, onde ela dormia serenamente. Espantou-o que ela parecesse tão frágil, encolhida como criança. Os longos cabelos escuros espalhavam-se, desordenados, sobre o travesseiro alvo, a pele morena macia convidava à carícia mais doce. Enterneceu-se. Sentia-se tentado a acordá-la suavemente quando um movimento, acompanhado de um gemido abafado, revelou o busto nu. O som gutural e a visão dos mamilos escuros dissiparam o transe e lembrou-o de que ela nada tinha de angelical, na verdade. Era, antes, a personificação dos seus demônios. Rememorou a risada e os movimentos devassos e sentiu-se inflamado. Acercando-se da cama, cravou os dentes com força no seio, arrancando-lhe um grito de surpresa, a qual durou pouco. Desperta, ela sorriu daquele jeito faminto e lúbrico, encarando-o, convidativa. Ferozes, lançaram-se ao embate.


Lívia Santana.
Uberlândia - 06/2005.
Imagem: Pedro Gomes.

Leo e Bia


Leo era agregado da família da tia, irmã da mãe. A esta, raramente via – vivia mudando, de parceiro e de cidade. Não conhecera o pai, cuja identidade a mãe não tinha certeza. Era um incômodo: recebia casa, comida e má vontade, ocupava um sofá-cama no quartinho dos fundos. O trabalho como balconista rendia-lhe exaustão e salário mínimo, a vida era árida. Mas Leo era infeliz, não resignado. Entrou prum curso noturno e, a despeito das probabilidades, passou na prova do vestibular. Escolheu o curso levando em conta dois fatores: a dificuldade – o que excluiu a Medicina – e o status da profissão, o que tornou o Direito a opção mais indicada. Estava então num mundo novo, absurdamente vistoso e cheio de possibilidades, para quem tivesse visão. Leo sabia a quem deveria agradar e nisso se empenhou. Tornou-se parasita charmoso, desfrutando largamente dos privilégios daqueles que elegera para amigos. Gastava o salário em roupas e freqüentava os melhores lugares – sempre por conta de algum amigo pródigo. Arrumou novo emprego num escritório renomado, por indicação de um herdeiro. A boa aparência e o carisma o tornaram popular com o sexo feminino, e ele cercou-se de muitos exemplares. Finalmente, era tratado como merecia. Vendo-o, julgavam tratar-se de um deles, equívoco que ele fazia questão de estimular.


Bia tinha biótipo de boneca. Olhos grandes e muito azuis, tez muito branca e suave, longos e brilhantes cabelos louros. Longilínea. Delgada. Quase etérea. A princesa dos contos de fadas, se princesas fossem depressivas e tivessem um grave problema de auto-estima. Filha de pais separados, detestava a madrasta e tinha aversão aos filhos do padrasto, razão pela qual os pais montaram-lhe um apartamento na cidade vizinha. Deram-lhe um carro, polpuda mesada e autonomia. Pagavam as contas. A vida era mansa. Raramente ligava para a mãe. Acostumou-se à solidão, embora a odiasse. Talvez para preencher o vazio, envolvia-se incessantemente em problemas. Seus relacionamentos sempre resultavam em lágrimas, como se tivesse mórbido prazer em precisar de drogas para dormir. Entre uma decepção e outra, foi para universidade. Não muito afeita a esforços, escolheu um curso que não exigisse grandes aptidões e a tornasse profissional – o Direito. Foi alvo de grande assédio desde o princípio: aparentava ser o tipo de garota ideal a ser exibida, como um troféu. Entretanto, Bia tinha fome de grandes amores e pendor irresistível a grandes dramas. Queria mistérios, rituais de conquista, obstáculos a serem superados. Algo que a frivolidade dos rapazes não conseguia alcançar e, portanto, nenhum obteve êxito.


Leo e Bia colidiram no campus numa noite fria dessas. Delicada, ela teve um hematoma. Ele a cobriu de atenções – machucara um anjo! Encantaram-se. Ela era o luxo perfeito para arrematar a vida dourada que ele tinha idealizado. Ele trazia nos olhos todo o mistério e a intensidade de que ela precisava. Belos, formaram vistoso casal. O sentimento, arrebatador no princípio, cresceu exponencialmente com o passar dos meses. A paixão era óbvia, até incomodava. Os grandes olhos azuis dela sorriam ao vê-lo, os escuros dele estreitavam-se ainda mais, ardentes. Adotaram como sua a música homônima, considerando um prelúdio do “felizes para sempre”. Pertenciam-se, era um sinal. Criaram pra si um mundo à parte. Ela dedicou-se a ele e afastou-se das amigas, as quais admiraram a entrega e velavam pela felicidade do par. Ele ficou orgulhoso de tê-la consigo – o que nenhum dos amigos conseguira – e procurou conservar apenas os companheiros de farra mais influentes, que envenenavam sutilmente a relação. Independente do que achassem do casal, os colegas habituaram-se a vê-los sempre juntos. Tanto, que não deixaram de notar quando Leo apareceu sozinho por seguidas vezes. Ele não encorajou perguntas, ninguém insistiu. Ao cabo de uma semana, Bia voltou ao braço do namorado, sorridente. Tivera uma gripe, só isso. Estava tudo bem, o incidente foi esquecido. Mas o sorriso de Bia deixara os olhos, mal chegava aos lábios. Leo estava inquieto, suscetível, ciumento. Impetuoso, parecia vigiá-la. Ela empregava toda a energia em ser natural e garantia que tudo corria bem. Tornou-se mais esquiva e ele foi visto de novo em companhia dos amigos dissolutos. Discutiram em público pela primeira vez. Mesmo visivelmente apaixonados, chegara o tempo do drama. Bia empalidecia e Leo assombreava-se. As brigas em público sucediam-se, cada vez mais terríveis, seguidas de tórridas reconciliações. Ninguém se surpreendia mais com a tormenta quando Bia teve outro hematoma, este no pulso. Outro tombo, nada sério, ninguém precisava se preocupar. Ela repeliu aproximações e negou, veemente, que tivesse algum problema. Mas foi internada em seguida e os ferimentos não deixavam margens a enganos. Surda a qualquer argumento, Bia asseverou que a culpa era dela. Não era capaz de entender o quanto Leo a amava e ele apenas mostrava o quanto ela o magoava. Ela tinha que aprender. Afinal, estavam destinados. Leo e Bia tinham que saber se amar. O que ela não considerou é que o primeiro sinal do destino não tinha sido a música e sim o hematoma. Essa consideração coube à mãe, inconsolável quando, semanas depois, o caixão foi velado com a tampa cerrada.


Lívia Santana.
Uberlândia - 06/2005
Imagem: autor desconhecido.

Primeiro Estágio


Ela abriu a porta e me atacou com um “bom dia”, pronunciado cuidadosamente pela boca do tamanho do mundo, já começando a me mastigar com os dentes perfeitos. Traiçoeira. Nem pude me defender. Fiquei ofuscado como se uma parcela do sol radiante que brilhava lá fora estivesse dentro dela. Nada mais excitante numa mulher do que a maturidade. Nada mais embriagante que o olhar seguro, cônscio do poder e da sensualidade que possui. Deslumbrei-me com o sorriso lento e deliberado de quem sabe o que quer e como fazer. Admirei, assombrado, a consistência das curvas e das palavras. Uma mulher completa, na medida. Sem as incertezas e frivolidades das meninas. Serena e excitante. Feminina, inteligente, determinada. Linda. Nem me lembro direito o que disse a ela na entrevista, o fato é que acabei contratado. Tenho a sensação de que percebeu logo o fascínio que exerceu sobre mim e que este foi um dos fatores pra ter me querido como estagiário. Ela me dá ordens o dia todo, de um jeito todo dela. Sempre agradável, sempre irresistível. Como se soubesse que basta me sorrir com os olhos promissores prá conseguir o que quiser. Diariamente observo-a se mover pelo escritório, elegante. Ela tem pernas longas, flexíveis, torneadas, sempre ocultas por calças bem cortadas. Usa saltos muito altos e finos, prato cheio pra qualquer fetichista. Nunca veste saias, como se soubesse que talvez eu não me contivesse e acabasse levando a cabo minha fantasia diária: atirá-la sobre a minha mesa e afundar a boca na curva suave do seu pescoço. Percebo que ela se diverte com os meus olhares e se compraz com o meu desejo, mas conserva criterioso distanciamento. E acho que a entendo. Não precisamos de vencedor nesse jogo, todo nosso. O que nos estimula é o embate diário, a possibilidade constante. É esta dança que nos torna cúmplices, que alimenta doce expectativa. Essa magia é que me mantém cativo, que dá um colorido único aos meus devaneios. Por hora, este estágio me basta e não o troco por nenhum outro.


Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005

Doentiamente


Teresa pode ser descrita por advérbios: imensamente solitária, pateticamente carente, visceralmente insegura, dolorosamente instável. Não é muito afetada pela realidade e pelas pessoas que vivem nela: enxerga o mundo de um jeito bem particular. Consome altas doses de nicotina – o melhor remédio pras freqüentes crises de tristeza paranóica. Tem habilidades medíocres, razão pela qual trabalha muito e arduamente. Os olhos verdes são muito claros e os cabelos artificialmente louros. O corpo é delicado e excessivamente bronzeado. Bonita e atraente, motivos de trazer o coração repleto de amargura e cicatrizes mal curadas. Seu grande objeto de afeição é Alice. A única capaz de ouvi-la e entendê-la. Capaz de aconselhar e conversar com ela durante horas. Capaz de dividir a casa e fazer-lhe companhia. Teresa admira muito Alice. Não passa um dia em que não queira ser como ela. Tão forte, serena, graciosa. Tão perspicaz e calculista. Tão independente, manipuladora e egoísta. Alice é a melhor amiga de Teresa – é o que esta declara devotadamente aos quatro cantos. A convivência das duas é extremamente harmônica: Teresa dedica-se a satisfazer, cuidadosamente, cada capricho de Alice. Sem perguntas, sem queixas. Simples assim. A satisfação de uma é o escopo principal da vida da outra. Teresa trabalha, mantém a casa, alimenta a ambas. Alice ocupa-se em dormir, se espalhar por toda a casa, tomar sol e, principalmente, dirigir a vida de Teresa – a diversão predileta. A distração de Teresa é usar a internet pela madrugada, ocasião em que pode ter contato com pessoas e fazê-las acreditar que é exatamente como gostaria. Corajosa, alegre, genial. Maravilhosa. Mas nem sempre Alice permite que ela se entregue ao passatempo, reivindicando peremptoriamente a atenção da amiga pra si. Ela dá palpites e ordens, zomba da fragilidade e frustra sem pestanejar os planos de Teresa. Alice vive feliz, em detrimento de Teresa. Esta depende da outra e a idolatra de tal maneira, que vive convicta de que mimá-la é a felicidade que pode ter. Sempre existirão os fracos e os fortes e, em relacionamentos é muito comum que aqueles dominem a estes. E nesse caso também seria, se Alice não fosse uma gata.


Lívia Santana.
Uberlândia - 05/2005
 
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