terça-feira, 15 de julho de 2008

Atrofia

- Oi, que saudades...
- Eu também.
- Tudo bem? (pergunta de praxe)
- Tudo certo. (resposta de praxe)
- Senti falta de conversar com você.
- Lamentei que tenhamos nos distanciado.
- Eu também. Mas foi preciso, estava me machucando.
- Nunca quis machucá-la.
- Sei disso. Por fim eu entendi.
- E o que você entendeu?
- Que estava além de você corresponder ao que eu queria. Eu estava pedindo o que você não podia dar. O único jeito de me desvencilhar de você foi percebendo que por mais que eu estivesse apaixonada, tudo não passava de energia dispendida em vão, nunca ia dar em nada.
- Você não se apaixonou por mim, eu era apenas uma novidade que a estimulava mentalmente.
- Na minha idade tudo é paixão.
- Na minha a paixão já morreu.
- Então você é um ancião embalsamado de quarenta anos?
- Não é isso.
- Então explica.
- Acho que sou um pouco cínico para a paixão. Ademais, é melhor conservar o controle.
- Não concordo com isso.
- Quer dizer que paixão é algo bom?
- Depende.
- Odeio oligossílabos. Fale até cansar ou não falamos.
- Usando uma expressão bem lugar-comum, paixão é um mal necessário.
- Ah, é? Convença-me.
- Sabe muito bem que não se pode convencê-lo de nada que já não esteja predisposto a aceitar.
- (sorriso) Você entendeu. Argumente.
- Já leu “Admirável Mundo Novo”?
- Já. Qual o ponto?
- SPV. Sucedâneo de Paixão Violenta, uma vez ao mês. A descarga de adrenalina provocada pela paixão é essencial ao organismo.
- ...
- Você pode até não entender, mas a maioria das pessoas não se sente feliz vivendo num mundo morno, cinza.
- Aí já está extrapolando. Meu mundo não é cinza porque não estou apaixonado.
- Não me referi a isso. Não estou falando de se vincular necessariamente a outra pessoa. Estou falando de marasmo, de falta de entusiasmo pela vida, de tédio, de solidão, de frustração. Estou falando de acordar todos os dias, ao lado de alguém que não ama, ir prum trabalho que não o desafia, ficar preso no trânsito dessa cidade infernal, reprimir seus instintos e desejos até o limite, sem ter nada pra compensar. Entendeu?
- Você está diferente.
- Diferente como?
- Mais dura.
- Não estou sendo dura. Só não me importo mais em ferir o seu ego. Incomoda?
- Não. Não quero que seja doce, pode ferir.
- Nem sei se consigo te ferir...Você parece tão empedernido, às vezes.
- Não sou empedernido.
- Apenas frio, não é?
- (sorriso) Um pouco. Condicionamento.
- Como era mesmo o papo dos oligossílabos?
- O que quer que eu diga?
- Conta uma coisa...
- Pergunte.
- Por que você não muda a sua vida?
- Não tenho grandes ambições. Não a esta altura da minha vida.
- Quer parar com isso? Essa sua mania de se referir a si mesmo como um moribundo centenário me deixa louca.
- Eu me sinto velho. Ultrapassado, até. Uma aberração.
- O que há em você de aberração são só os seus fetiches. (sorriso) Afora isso, você se sente velho porque é um cético mal humorado, anti social e sombrio, que olha pro resto do mundo morto de enfado.
- Como você está eloqüente hoje!
- ...
- Pode ser que você tenha razão.
- Então responda à minha pergunta.
- Eu gosto da minha vida.
- Não, não gosta.
- A questão é que a minha vida é essa. Apesar de tudo, essa é a minha realidade. Não posso ir embora. Já tentei e descobri que a minha raiz está entranhada muito fundo nessa terra, que fora dessas paredes fico desorientado, sem chão. Não amo mais a minha mulher, mas não sei como ficar sem ela. Meu trabalho é tedioso, mas é o que eu faço. Por mais que eu fantasie sobre isso, não vai haver nenhuma mudança. Não há, na verdade, nada melhor pra mim aí fora.
- E por que não me disse isso antes?
- Eu não costumo dizer isso a ninguém.
- Você parece muito diferente do homem que eu conheci.
- Na verdade, não. Eu vivia recluso já naquela época, apenas não gosto muito de alardear essa condição.
- Mesmo a porta da gaiola estando aberta você não sai?
- Não é me fustigando que você vai me fazer sair da gaiola.
- E por que não sai?
- Aqui é seguro. Por mais que pareça sofrido...
- Você é que faz parecer sofrido.
- Eu sei que sim. Mas apesar das minhas muitas reclamações, não é tanto assim. Aqui é confortável, seguro, familiar. Entre essas grades estive a vida toda, aqui aprendi tudo o que eu sei. Aqui estão as minhas referências e as minhas lembranças, boas e más. Por aqui passaram todas as pessoas que já foram importantes pra mim. Tive muitos momentos felizes. Infelizes também, mas é aqui que eu sou eu, é desse jeito que eu sei ser eu. Aí fora pode ser sedutor, pode parecer que há possibilidades infinitas, mas não passa de ilusão. Não tenho anticorpos pro que ainda não conheço e não tenho certeza se posso produzi-los. Por mais que eu quisesse, não sei mais voar e tenho que aceitar isso.
- Que coisa triste. Você vive um personagem.
- De certa forma sim.
- Eu entendo. Quer que feche a porta de novo?
- Não, deixe recostada. Assim ao menos eu tenho a ilusão de que não saio porque não quero.
- Mas é isso mesmo.
- Não. Não saio porque minhas asas não podem mais.

Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
Imagem: autor desconhecido.

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