quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Cartomante


“Dona Madalena. Joga búzios, tarô, lê a mão. Vê o futuro. Faz amarração para o amor”.

Ela hesitou, revirando o panfleto nas mãos suadas, cujas unhas roídas denunciavam a ansiedade. “E se...?” Custava a decidir-se. Nunca fora crédula, sempre resolvera os próprios problemas com certa facilidade. Sempre pensara que crendices eram para ignorantes ou desesperados, se não ambos. Joana não, era mulher culta, viajada, independente. Conseguia tudo o que desejava, acreditava em si mesma. E agora estava ali, segurando aquele panfleto amarfanhado entre os dedos inquietos, relutando em reconhecer-se impotente para o que quer que fosse. Cartomantes. Sim, isso era coisa para desesperados. Mas não era assim que se sentia? Já tinha tentado de tudo e nada surtira efeito!

Decidiu-se, iria ver a cartomante.

A sala de esperas era pouco iluminada e recendia a almíscar. Incenso. Pequenas almofadas vermelhas espalhavam-se por sobre as poltronas e pelo chão, um sino de vento em forma de luas e estrelas estava pendurado num canto. Havia mais duas clientes além dela. Uma moça jovem e loura com os olhos inchados de tanto chorar, usando um vestido rosa amarrotado, que a deixava mais pálida e infeliz. A outra beirava os quarenta anos, tinha os cabelos tingidos de uma cor indistinta, vestia-se com apuro e trazia nas mãos uma pomba branca amarrada com um lenço vermelho, quase esmagada tanta era a força com que era segurada.

Acabara de sentar-se e a cortina púrpura do canto abriu-se dando passagem à – supunha – Dona Madalena. Tinha cabelos cor de fogo revoltos e unhas compridas pintadas de vermelho sangue. Usava óculos roxos com as extremidades puxadas para cima e uma longa túnica da mesma cor dos óculos. O olhar era azul e amalucado, como desenho animado.

Teve impulsos de ir embora. Aquela figura inusitada parecia precisar mais de ajuda do que ela. Porém controlou-se, enquanto a mulher com a pomba saltava da cadeira, visivelmente excitada: “Dona Madalena, aqui está!” e estendeu o bicho na direção da anfitriã. “Muito bem! Há quanto tempo o animalzinho está amarrado?”, perguntou esta com um sorriso ainda mais maluco. “Seis horas”, foi a resposta. “Ah, então aguarde mais um pouco... assim que completar as dez, falaremos”. A mulher da pomba sentou-se, aparentando alegria.

“Ela vai esperar mais quatro horas?” – o impulso de ir embora veio mais forte que nunca.

A cartomante virou-se então para a mocinha loura. “Pronta, querida?” A menina encarou-a com os olhos tristes e negou com a cabeça, mal contendo as lágrimas que tornavam a cair.

“Então parece que é a sua vez”. – a vidente sorriu. Respirando fundo, Joana levantou-se e passou através da cortina púrpura. Lá dentro era abafado e o cheiro de almíscar era ainda mais forte. Sentou-se na cadeira indicada, em frente a uma mesinha redonda. Dona Madalena sentou-se em frente a ela e tomou a mão direita de Joana. Depois de alguns minutos enunciou: “O nome dele é Raul. Um Adônis. Arquiteto, bem vestido, discreto, educado, exímio dançarino. Solteiro, sem filhos, sem namorada. Conquista todas as mulheres que o cercam e não elege nenhuma. Um enigma. Certo?”.

Surpresa, Joana reconheceu que era verdade. Dona Madalena trocou a mão direita pela esquerda e tornou: “Entre tantos homens que a disputam, você se interessou pelo único que a repudia. Já usou diversos expedientes para envolvê-lo e nenhum obteve êxito. Já se ofereceu, já interpretou a moça frágil e a mulher dominadora, já se aproximou da mãe dele, já se enturmou com os amigos, já tentou até embebedá-lo. Nada. Ele continua indiferente. Está se consumindo pela paixão não correspondida. Sonha, fantasia, e sente que morreria para tê-lo”. E fitando-a com o olhar divertido, indagou: “Estou certa?”

Joana balançou a cabeça em sinal afirmativo, epantadíssima com o que acabara de ouvir. E como a cartomante mantivesse silêncio, inclinou-se para frente, ansiosa: “A senhora pode me ajudar?”

Dona Madalena alisou os cabelos cor de fogo, pensativa. “Posso, sim, menina, mas não da forma como pensa”. Joana franziu o cenho: “Como assim?”.

A cartomante tirou os óculos. Parecia outra pessoa, com expressão séria e espantosamente lúcida. “Acho que o melhor a fazer é esquecer isso, nenhum capricho vale tanto desgaste”. Joana apressou-se em falar, em defender a sua paixão com veemência, mas foi impedida pela outra. “Pense comigo, menina. Não acha que ele é perfeito demais?” Joana indignou-se: “A senhora está insinuando que ele é bom demais para mim?” A cartomante riu. “Não, querida. Estou dizendo simplesmente, que ele é bom demais. Pense. Bem vestido, sabe dançar, cozinhar, pinta, gosta de filmes de arte, de ópera e de se exercitar. O que podemos concluir disso?”.

Joana deixou cair o queixo. Não podia ser!

E, ante a expressão estarrecida da moça, Dona Madalena sorriu docemente. “Se o seu nome fosse João, querida, não haveria nada que a impedisse de conquistá-lo”.


Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.

Um comentário:

Cosmunicando disse...

hahaha... inusitado esse final, adorei =)

 
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