terça-feira, 16 de dezembro de 2008
Apenas Mais Uma de Amor
terça-feira, 25 de novembro de 2008
Poder
terça-feira, 18 de novembro de 2008
Império dos Sentidos
Em casa, fui entrando e anunciando: "Vou ver Império dos Sentidos, alguém me acompanha?" Veio todo mundo para a sala. Papai, mamãe, irmão, cachorro. Ah, então o filme era "indecente" mas ninguém ia perder, né? Só eu mesmo pra assistir um filme desses em família, arre! Soltei o filme. No princípio os adolescentes se cansaram: "Pó, filme de japonês?", mas logo em seguida arregalaram os olhos e ninguém falou mais nada. Aliás, minto. Volta e meia mamãe soltava um: "credo!".
Dirigido por Nagisa Oshima, Império dos Sentidos é ambientado em 1936, quando o Japão era marcado pelo conflito entre as culturas oriental e ocidental. Abe Sada, a personagem principal, emprega-se na casa de Kichizo e, entre as tarefas humildes, espiona as intimidades do patrão e da esposa durante algum tempo, até que ela mesma se torna amante de Kichizo.
Mas Sada está longe de ser a amante como estamos acostumados a pensar. Furtiva, relegada ao segundo plano, resignando-se em ser uma válvula de escape para o casamento do amante. Não. Ela se torna o centro da vida de Kichizo e nunca se envergonha do seu amor e de seu ato sexual, não se importando sequer em ser observada, em fazê-lo em público.
Sada é considerada a representante de uma era pré-ocidental e pré-cristã, em que, em lugar da virgindade, o principal valor é a experiência. Ela torna a prática sexual uma necessidade, através da qual busca saciedade e gozo incessantemente. Experimenta de tudo, faz questão de procurar o prazer em cada recôndito do corpo e da alma do amante e da sua própria.
Os amantes evocam práticas diversas para temperar o ato sexual como voyeurismo, pompoarismo, sadomasoquismo e até asfixia. Há cenas fantásticas e antológicas, como a do ovo - não vou contar, morram de curiosidade ou assistam ao filme! - ou a final, majestosa e chocante.
O filme significou um ato de libertação, uma mudança na vida de cada um dos envolvidos. Os atores fizeram sexo realmente em todas as cenas - a esposa do protagonista teve que aceitar a idéia do marido tendo relações com outra mulher ante uma câmera. Segundo o próprio diretor, a equipe técnica transformou-se em idólatra da erotômana Abe Sada, transformando a atmosfera das filmagens e da própria película, em ritualística, densa, solene. Assistir ao filme é presenciar o culto a uma entidade: o sexo.
Lívia Santana
Uberlândia - setembro/2005.
Imagem: pôster do filme.
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
Cartomante
“Dona Madalena. Joga búzios, tarô, lê a mão. Vê o futuro. Faz amarração para o amor”.
Ela hesitou, revirando o panfleto nas mãos suadas, cujas unhas roídas denunciavam a ansiedade. “E se...?” Custava a decidir-se. Nunca fora crédula, sempre resolvera os próprios problemas com certa facilidade. Sempre pensara que crendices eram para ignorantes ou desesperados, se não ambos. Joana não, era mulher culta, viajada, independente. Conseguia tudo o que desejava, acreditava em si mesma. E agora estava ali, segurando aquele panfleto amarfanhado entre os dedos inquietos, relutando em reconhecer-se impotente para o que quer que fosse. Cartomantes. Sim, isso era coisa para desesperados. Mas não era assim que se sentia? Já tinha tentado de tudo e nada surtira efeito!
Decidiu-se, iria ver a cartomante.
A sala de esperas era pouco iluminada e recendia a almíscar. Incenso. Pequenas almofadas vermelhas espalhavam-se por sobre as poltronas e pelo chão, um sino de vento em forma de luas e estrelas estava pendurado num canto. Havia mais duas clientes além dela. Uma moça jovem e loura com os olhos inchados de tanto chorar, usando um vestido rosa amarrotado, que a deixava mais pálida e infeliz. A outra beirava os quarenta anos, tinha os cabelos tingidos de uma cor indistinta, vestia-se com apuro e trazia nas mãos uma pomba branca amarrada com um lenço vermelho, quase esmagada tanta era a força com que era segurada.
Acabara de sentar-se e a cortina púrpura do canto abriu-se dando passagem à – supunha – Dona Madalena. Tinha cabelos cor de fogo revoltos e unhas compridas pintadas de vermelho sangue. Usava óculos roxos com as extremidades puxadas para cima e uma longa túnica da mesma cor dos óculos. O olhar era azul e amalucado, como desenho animado.
Teve impulsos de ir embora. Aquela figura inusitada parecia precisar mais de ajuda do que ela. Porém controlou-se, enquanto a mulher com a pomba saltava da cadeira, visivelmente excitada: “Dona Madalena, aqui está!” e estendeu o bicho na direção da anfitriã. “Muito bem! Há quanto tempo o animalzinho está amarrado?”, perguntou esta com um sorriso ainda mais maluco. “Seis horas”, foi a resposta. “Ah, então aguarde mais um pouco... assim que completar as dez, falaremos”. A mulher da pomba sentou-se, aparentando alegria.
“Ela vai esperar mais quatro horas?” – o impulso de ir embora veio mais forte que nunca.
A cartomante virou-se então para a mocinha loura. “Pronta, querida?” A menina encarou-a com os olhos tristes e negou com a cabeça, mal contendo as lágrimas que tornavam a cair.
“Então parece que é a sua vez”. – a vidente sorriu. Respirando fundo, Joana levantou-se e passou através da cortina púrpura. Lá dentro era abafado e o cheiro de almíscar era ainda mais forte. Sentou-se na cadeira indicada, em frente a uma mesinha redonda. Dona Madalena sentou-se em frente a ela e tomou a mão direita de Joana. Depois de alguns minutos enunciou: “O nome dele é Raul. Um Adônis. Arquiteto, bem vestido, discreto, educado, exímio dançarino. Solteiro, sem filhos, sem namorada. Conquista todas as mulheres que o cercam e não elege nenhuma. Um enigma. Certo?”.
Surpresa, Joana reconheceu que era verdade. Dona Madalena trocou a mão direita pela esquerda e tornou: “Entre tantos homens que a disputam, você se interessou pelo único que a repudia. Já usou diversos expedientes para envolvê-lo e nenhum obteve êxito. Já se ofereceu, já interpretou a moça frágil e a mulher dominadora, já se aproximou da mãe dele, já se enturmou com os amigos, já tentou até embebedá-lo. Nada. Ele continua indiferente. Está se consumindo pela paixão não correspondida. Sonha, fantasia, e sente que morreria para tê-lo”. E fitando-a com o olhar divertido, indagou: “Estou certa?”
Joana balançou a cabeça em sinal afirmativo, epantadíssima com o que acabara de ouvir. E como a cartomante mantivesse silêncio, inclinou-se para frente, ansiosa: “A senhora pode me ajudar?”
Dona Madalena alisou os cabelos cor de fogo, pensativa. “Posso, sim, menina, mas não da forma como pensa”. Joana franziu o cenho: “Como assim?”.
A cartomante tirou os óculos. Parecia outra pessoa, com expressão séria e espantosamente lúcida. “Acho que o melhor a fazer é esquecer isso, nenhum capricho vale tanto desgaste”. Joana apressou-se em falar, em defender a sua paixão com veemência, mas foi impedida pela outra. “Pense comigo, menina. Não acha que ele é perfeito demais?” Joana indignou-se: “A senhora está insinuando que ele é bom demais para mim?” A cartomante riu. “Não, querida. Estou dizendo simplesmente, que ele é bom demais. Pense. Bem vestido, sabe dançar, cozinhar, pinta, gosta de filmes de arte, de ópera e de se exercitar. O que podemos concluir disso?”.
Joana deixou cair o queixo. Não podia ser!
E, ante a expressão estarrecida da moça, Dona Madalena sorriu docemente. “Se o seu nome fosse João, querida, não haveria nada que a impedisse de conquistá-lo”.
Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.
sexta-feira, 31 de outubro de 2008
A Rainha das Mulatas
Rita Baiana é um dos personagens mais notáveis da literatura brasileira. Filha do realismo naturalista, é escrita com uma riqueza de detalhes visuais e sensoriais incríveis. Forte, apaixonada e politicamente incorreta, é absolutamente impossível não adorá-la. Sedutora e consciente de seus encantos, é maliciosa e faminta de vida, um diabo de saias. É sem dúvidas, a alma de O Cortiço, de Aluízio de Azevedo, embora não seja a protagonista. Ela não aparece desde o começo e nem está presente no fim, mas rouba a cena em sua aparição fulminante. Escrita em 1890, é uma mulher a frente de seu tempo. Ama a quem lhe aprouver, da forma que melhor lhe parecer. É deliciosamente livre e despida de amarras e preconceitos, é como a maioria de nós queria ser. É mulata decidida e generosa que enfrenta a vida de peito aberto, disposta a sofrer e gozar com a mesma intensidade. Fiel aos seus gostos e às suas paixões, a elas se entrega por inteiro.
É o símbolo da brasilidade quente que penetra na alma lusitana de Jerônimo, o português enamorado, e varre toda a nostalgia d'além mar que havia nele. Caído pela mulata, ele abandona mulher e filha, abraça a vida boêmia, contrai dívidas, perde a força moral e chega a ponto de matar um homem com um pedaço de pau. "Isso não é mulher, é uma desgraça", você provavelmente pensará. Mas para ele, o amor da Rita é insubstituível e justifica tudo. Nos braços dela, tudo adquire uma cor fulgurante e fantástica, não dando margem a lamentações, arrependimentos e nem dores. Ele a venera, satisfaz todos os caprichos, arde e morre por ela, se preciso for. Passa por todos os dissabores e tormentas, mas não lhe tirem a Rita, que sem ela não pode mais viver. Como vício destrutivo, como doença, ela é a seiva que o alimenta, a força que o impulsiona. Torna-se cativo por gosto e por vontade.
Rita Baiana é a personificação do melhor e do pior da mulher, com toda a magia e a ruína que lhes é peculiar. Mas não uma mulher comum, e sim uma dotada do orgulho e da beleza da raça negra da qual descende, aliada à ferocidade da mulher pobre que defende seu espaço e seu sustento. Ela transborda alegria e sensualidade, é corajosa, digna, guerreira - até as últimas instâncias, até à violência física - e essencialmente hedonista. Mas o mais marcante nessa mulher, assim como em toda a obra de Aluízio Azevedo, é que Rita Baiana é humana. Passa longe de qualquer heroína convencional da literatura brasileira, sempre tão cheia de Helenas (Machado de Assis) e Marílias (aquela de Dirceu), tão brancas, castas, atormentadas, frágeis, suspirantes. Ela não. Ela ri e se comove com o mesmo que todos nós. Tem seus momentos de egoísmo, de fúria, de mesquinharia, para logo em seguida abrir-se toda em generosidade ímpar. É amiga, companheira, carinhosa, brincalhona, devassa, inebriante. Mulher, personagem e símbolo inesquecíveis.
Lívia Santana
Maçã
Lívia Santana.
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
Prometeu
Certamente são graves os meus crimes. Piores ainda por atingirem o ser mais digno de amor e honradez em que já pus os olhos. Razão teria em chamar-me monstro, o mal que lhe causei ainda se estampa na face. Recordo a vileza com que lhe traí os sentimentos e a confiança e sinto arrepios.
Revejo incessantemente suas lágrimas abundantes, transbordando vergonha e mágoa. Presenciei sua agonia e o choque foi suficiente para despertar-me do torpe torpor em que mergulhara. Atingiu-me desespero fulminante, não entendia como pudera cair tanto. Sufoquei de culpa, cambaleei ante a força do amor que me invadiu. Mas então era muito tarde, não havia mais volta.
A pena que me coube foi o degredo e, no cimo da montanha, expio meus pecados. Meu libelo, repetido continuamente pelo meu algoz, ecoa em meus ouvidos, inflingindo-me tortura impiedosa, causticante. Apenas experimento alguns momentos de alívio quando o abutre – bendito – vem bicar-me o fígado, todos os dias.
Lívia Santana.
Na Chuva
Durante toda a tarde o vento rodopiou as folhas e as saias, anunciando chuva e, finalmente, na última hora de sol, ela chegou. Bendita. Sensação de liberdade e prazer indescritíveis. Como se energia liquefeita penetrasse em meus poros e iluminasse-me a entranha, sacudindo a vida em minhas veias. A forma perfeita de lavar a mente e o espírito, ficar leve como as nuvens depois que precipitam. Sob as gotas frias, virei criança de novo. O rosto afogueado, corri pela rua, chapinhei as poças, dancei e rodei, embalada pelo som do meu próprio riso infantil.
Então atentei prum elemento dissonante: eu tinha platéia. Um homem bem mais velho – eu tinha dezesseis – estava parado a alguns passos de mim, indiferente à chuva que ensopava suas roupas claras, olhando-me fixamente. Parecia confuso, chocado até. Sem saber por quê e sem me lembrar que também eu estava encharcada, proporcionando uma vista privilegiada através do meu vestido leve, me aproximei.
O olhar escuro, mesmo ligeiramente surpreso, ardia e hipnotizava, era impossível me afastar. Era alto, forte, tinha a pele morena e os cabelos pretos, entremeados de poucos fios prateados. Não chegava a ser bonito, mas era atraente. Ficamos nos encarando por alguns minutos, dissociados da lógica, até que ele fugiu, correndo sob a chuva, antes que eu pudesse esboçar qualquer gesto para detê-lo.
Nunca o tinha visto, não sabia nada sobre ele, sequer tinha ouvido-lhe a voz, e quisera detê-lo. Por quê? E por que ele tinha fugido? No fundo, era o que mais me intrigava. Sabia que o arrepio que tinha sentido na nuca nada tinha havido com a chuva. Aquilo tumultuou a minha noite, fazendo-me rolar na cama, insone e ansiosa. A sensação de ser observada, devassada pela curiosidade de um espectador nebuloso, permanecia e impedia-me de conciliar o sono. Além disso, o olhar do desconhecido continuava a me perseguir, chamando-me.
Passei os dias que se seguiram vasculhando a vizinhança tentando revê-lo, inutilmente. Ele tinha sumido, como se tivesse se escondido. Passei a esperar ainda mais ansiosamente que chovesse, na esperança dele aparecer e, realmente, o vi mais algumas vezes, sempre em dias de chuva e sempre fugindo de mim quando eu tentava me aproximar.
Aquilo já era idéia fixa, eu tinha que encontrá-lo, saber quem era, dar vazão à impressão tão forte que me causava. Estava obcecada por um estranho e senti crescer um desejo absurdo por ele. Meus sonhos crepitavam lascivos, sentia na pele o toque forte das mãos dele. Esfregava-me contra os lençóis tentando aplacar a sede através de gozo solitário, a agonia quase insuportável.
Dias depois, o sol já tinha se posto e o céu ia gradativamente assumindo um azul mais escuro, quando senti as primeiras gotas. Tinha me sentado na calçada, sentindo a chuva sobre a pele trêmula, imaginando se ele apareceria, quando o vi a alguns metros, olhando daquele jeito intenso, quase dolorido.
Em vez de tentar aproximar-me, despi o vestido molhado e encarei-o, desafiando-o a ser capaz de ir embora de novo. Hesitante, ele veio até mim e ajoelhou-se no chão aos meus pés, o olhar ainda atormentado. “Você é só uma menina”. Então era isso. Eu ri e arrematei: “Você não sabe de nada”. Coloquei a mão dele sobre o meu seio pequeno e senti a resistência dele ir por terra. Aquela disputa sob a chuva eu tinha vencido.
Lívia Santana.
Uberlândia - setembro/2005
Imagem: autor desconhecido.
Encenação (ou Pedestal)
É chegada a hora de encerrarmos a temporada, o público demonstra sinais inequívocos de enfado, toda a companhia está extenuada. A platéia já se tornou tão exígua que os parcos aplausos ressoam quase zombeteiros pelo vazio da penumbra...
(suspiro... ele esfrega os dedos pelo cabelo, num gesto confuso e furioso... abre um novo arquivo e começa a digitar febrilmente)
A angústia que me assola é tanta que nada consigo escrever além de textos melancólicos e desesperançados. Sinto uma sombra escura e pesada envolvendo-me o coração, que já não sabe como é não estar oprimido. Ando pela casa, sorumbático, suspirando de saudades, tentando me esconder dos olhos grandes, escuros e tristes dela.Ela. Ah, como eu a queria de volta! Daquele jeito doce que era, e que me emocionava por vezes quase até às lágrimas. O sorriso tão claro e franco, o olhar exultante que me dirigia toda vez que eu chegava, o encaixe perfeito do seu corpo frágil em meus braços. Ela era como um pássaro canoro, enchendo de vida e alegria a casa e a vida. Tudo parecia perfeito, eterno, eu nunca tinha sido tão feliz. E agora isso.
Quem porventura lesse estas linhas pensaria estar diante do desabafo de um viúvo ou talvez de um amante abandonado. Sinto-me um pouco como ambos e, no entanto, ela está bem ali, ao alcance de minhas mãos. E não sinto a menor vontade de tocá-la. Na verdade, não gosto mais dela. A cada dia gosto menos, se é que é possível, e sinto o enlevo escapar-me por entre os dedos lentamente. Eu a amo - oh, sim, amo muito! - por tudo o que vivemos juntos, tudo o que já fomos, o que já tivemos. E não temos mais. Já não consigo sentir ternura pelo som da sua voz ou da sua risada, como antes. Às vezes sinto mesmo indiferença. Seus olhares carinhosos já não significam nada, não são capazes de me tocar, e qualquer declaração de natureza amorosa resvala por mim sem produzir nenhum efeito.
Não que haja repulsa - ainda - apenas não me importo, a presença dela já não faz diferença. E ela sente isso. Como não sentiria, se sempre demonstrei paixão e a tratei com todos os mimos e agora, quando me dirijo a ela é para censurar-lhe por algo? Ela sente e vejo que não sabe como agir. Alterna entre crises de ressentimento e tentativas vãs de tornar ao que éramos antes. Está perdida, e nem mesmo me apiedo dela. Acuada, se fecha cada vez mais, o que tem o condão de me irritar e entristecer. Como é duro presenciar o fim gradual de tudo que era tão belo e incrível, como é terrível me sentir impotente! É tão estranho gostar menos de alguém à medida que se conhece... Quanto mais familiar ela me parece, mais me desagrada. A forma com que ela encara o mundo não se ajusta à minha, sou obrigado a reconhecer. Não é nem de longe a companheira que eu gostaria e não entende o que tento lhe dizer. Interpreta sempre da pior maneira, como se eu a estivesse atacando e, por isso, vive se defendendo. Tenho-me sentido numa trincheira. Basta que eu diga algo que possa soar ofensivo ou que a contrarie para que a batalha seja desencadeada.
Como é possível gostar menos a cada dia da pessoa que se ama? O conhecimento está matando meu amor? Por quê? Aquela a quem realmente amo, por quem me apaixonei, seria apenas uma imagem, uma idealização? Teria ela desempenhado um papel ao nos conhecermos? Teria me enganado? Ou eu mesmo o fiz? Procurei alguém que fosse aquilo que eu queria, que preenchesse as minhas expectativas? Estarei me sentindo frustrado agora por perceber as limitações da atriz que escalei para o papel? Quis esse tempo todo que ela fosse alguém que não é na verdade?
Mas só queria que ela fosse como antes! Tão linda, meiga, esperta, desejável e dócil!...Por que tinha também que ser egoísta, teimosa, suscetível e impiedosa com os meus defeitos? Por que ela tinha que me avaliar e me reprovar? Por que não podia continuar a me olhar daquele jeito apaixonado? Era tudo tão bom antes! Ela só precisava entender que tinha que se amoldar a mim para nos encaixarmos, para vivermos em harmonia! Como foi que a paixão se metamorfoseou em constrangimento? Por que agora o olhar dela é sempre tão triste? Onde foi que tudo ruiu? (...) Não sei. Fico pensando se há o que salvar ou se não passou de ilusão que durou tempo demais. Por que temos essa relutância em admitir o fracasso? Talvez seja o pânico de ver o tempo passar, de me sentir envelhecer e os relacionamentos falidos irem-se sucedendo inexoravelmente. Talvez a sensação de que nunca na verdade dará certo, que é impossível, estou fadado a ficar só. Que é tudo inútil e o melhor é desistir.
(suspiro)
A verdade é esta, não gosto mais dela, da pessoa que se tornou - ou que sempre foi e eu nunca enxerguei. Por que sempre temos que nos perder de quem amamos? Meu falecido pai, aquele amigo de infância que era eterno, cada mulher que já amei. Todos perdidos, inalcançáveis. Acho que estou até me acostumando. Ela me disse outro dia que a minha frieza a assusta, e acho que estou mesmo frio. Distante, indiferente, cético. Sei que ela julga impossível que seja obra de alguma rival - tenho mesmo que admirar a segurança dela - mas de certa forma está enganada. Realmente uma outra mulher ocupa o meu pensamento: aquela que ela costumava ser. É esta que tem deixado perdido o meu olhar, que tem povoado os meus sonhos. Fico me perguntando se ela existiu mesmo ou se foi criação minha. E em alguns momentos chego a ter a certeza de que sim, eu a criei. Era perfeita demais.
Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005
Imagem: autor desconhecido
THE SHOW MUST GO ON
...então tudo morre.
Porque pra morrer basta estar vivo, e pra acabar, basta ter começado. E tudo o que passou fica na memória, enquanto esta não teimar em banir as lembranças pro fundo escuro do inconsciente...
Agora fecha-se o pano e apagam-se as luzes da ribalta. Os expectadores vão para casa.
E ninguém que testemunhou o espetáculo irá sequer suspeitar de que nos fundos, num camarim sórdido, em frente a um espelho lascado e marcado pela ferrugem, a atriz fita com os olhos vermelhos e inchados a própria imagem borrada pela maquiagem escura, enquanto chora silenciosamente, sofrendo, lamentando mais uma vez, o fim da história.
Lívia Santana.
Uberlândia - agosto/2005.
Imagem: autor desconhecido.
terça-feira, 15 de julho de 2008
Contemplação
Vejo-as desde que o conheci, há anos, quando tentou me assustar com suas tristes idéias céticas para que eu me afastasse. Naquele dia atirou-me ao rosto um punhado de sofrimento íntimo mimetizando agressividade e lembro-me da fúria de suas palavras que mal podiam ocultar tanta angústia e solidão. Permanece muito viva a lembrança do enternecimento que senti então, uma vontade imensa, imensa de abraçá-lo e dizer-lhe que nada era tão ruim. Ainda vejo a surpresa em seu rosto quando, a despeito de seus esforços, eu lhe sorri e garanti que ele não me metia medo e que estava disposta a ficar. Passei no teste, eu acho, ele foi perdendo a reserva comigo e nos tornamos amigos, muito amigos.
Às vezes ele parecia carregar o peso do mundo nos ombros e me olhava tão, tão, tão dorido. Lembro-me de como o amparei diversas vezes nos braços enquanto chorava, tentando aliviar sua dor e mostrar que havia motivo para sorrir e acreditar. Ele sempre foi muito frágil e imensamente forte, num momento era a imagem da tristeza e no seguinte, os olhos brilhavam e brilhavam, como os de criança. Ainda agora ouço a risada debochada, contagiante, acompanhada de gestos febris que mal conseguiam traduzir seu contentamento ou sua excitação.
Desejos. Lembro-me dos olhos dele, fulgurantes, repletos deles, fitando-me num minuto e, no seguinte tinha as mãos no meu corpo, todo ele vibrando, ardendo, dissolvendo e me levando junto, prum mundo de formigamento. Recordo o gozo ruidoso, abundante, desfalecente, ele arregalava os olhos, desmesurados, depois de alguns momentos, como se procurasse compreender algo, como se a ordem do mundo tivesse sido invertida e ele demorasse algum tempo para encontrar sentido nas coisas novamente. Depois ria, primeiro de mansinho e depois com maior e maior intensidade, às vezes quase até às lágrimas e concluía que éramos incríveis juntos.
Os dias passaram, passaram e, um dia, eu me lembro, ele me olhou de um jeito diferente. Começamos um papo tímido, eu tremia, ele prendia a respiração, o que se falou se perdeu nas curvas da minha memória, mas ali reatamos a amizade, frágil, ansiosa, sofrida, a princípio, que foi-se solidificando gradualmente. E de novo, éramos amigos inseparáveis, que riam e falavam, falavam por horas a fio e pela noite adentro, compartilhando idéias, discutindo bobagens e se amando mais que nunca, como sempre é da segunda vez, depois que quase se perdeu aquilo que se amava.
Conservo a nítida lembrança dessas noites e desses dias, quando pude aprender a conhecer cada franzir de sobrancelha, cada sorriso do Victor, que está tão bonito ali, sentado no sofá, se dando conta nesse momento da minha presença aqui nesse canto, olhando-o com olhar perdido e um sorriso bobo nos lábios. Olha-me com expressão de interrogação, faz um gesto para que eu me aproxime e me puxa para o colo, perguntando “Que foi?” Eu sorrio “Nada.” Então ele também sorri, dá-me um beijo suave na ponta do nariz e conclui “Casei com uma mulher maluca.”
Mais Uma Vez
- Úmido. – pronunciou lentamente.
Susteve a respiração. Como sentia a falta dela! A boca ficou seca, hesitou, receando romper o encanto. Após uma pausa, ela suspirou:
- Quero você.
Combinaram o encontro às dez, num lugar público. Ele encostou o carro, ela entrou apressada. Cada ato era recheado com sabor clandestino. Encararam-se por alguns segundos eternos. Expectantes, a respiração irregular. Estavam ali de novo, depois de tanto tempo. Não sabiam bem o que faziam, mas sabiam que era impossível não fazer. O carro moveu-se lentamente pelo trânsito movimentado, enquanto conversavam sobre qualquer coisa desimportante. Não se dirigiam a nenhum lugar específico, tanto era o prazer de apenas estarem juntos. Não era racional, não fazia sentido, existia um milhão de motivos para que seguissem rumos distintos. Mas amor é teimoso e não morre tão fácil, por mais que se queira, por mais que o mate todos os dias.
Riam de alguma bobagem quando passaram em frente a uma profusão de horríveis luzes verdes, onde estava escrito “Motel Selva”.
- Vamos? – propôs, maliciosa.
Entre risadas, ele concordou. Por mais grotesco que fosse, aquela noite era mesmo uma grande travessura e detalhes assim só poderiam torná-la mais excitante.
Pegaram a chave na portaria – aonde escolheram o “Leopardo” entre outros felinos disponíveis – e seguiram para a suíte. Acesas as luzes, o ambiente era inusitado. Paredes pintadas de lilás com algumas manchas, pretendendo decoração temática, a cama com imensa cabeceira ornamentada com cetim azul berrante, espelhos no teto e em toda parte, luzes alaranjadas e um sortimento incrível de acessórios eróticos sobre uma mesa. Deliciados, concordaram que o ambiente era perfeito. Não queriam um ninho de amor, quanto mais vulgar, melhor.
Serviram-se no frigobar – duas cervejas – e brindaram. Não havia pressa. Ele tirou do bolso uma caixinha, ela fitou-o, curiosa. Eram dados, daqueles que dizem o que fazer. Beijar-lamber-morder-massagear-beliscar-interrogação. Boca-barriga-pés-nuca-orelha-interrogação. Era um desafio, doce agonia, a cama serviria como mesa. Jogaram uma, duas, três vezes. Mordida na nuca. Beijo na orelha. Lambida no peito. Na quarta – beijo na boca – não puderam mais e agarraram-se, sôfregos, mal conseguindo livrar-se das roupas. Gozaram como loucos, ruidosamente, mal ele a penetrou. Caíram de lado, arquejando, trocaram um olhar dolorido. Como tinham podido se separar, se era tudo tão certo? Como se separariam de novo, depois daquela noite? Procuravam a resposta à pergunta mútua um nos olhos do outro e então perceberam. Não se separariam. Era um recomeço, uma nova chance. Com as emoções afloradas, mergulharam um no outro, mais uma vez. A noite seria longa. Infindável.
Atrofia
- Eu também.
- Tudo bem? (pergunta de praxe)
- Tudo certo. (resposta de praxe)
- Senti falta de conversar com você.
- Lamentei que tenhamos nos distanciado.
- Eu também. Mas foi preciso, estava me machucando.
- Nunca quis machucá-la.
- Sei disso. Por fim eu entendi.
- E o que você entendeu?
- Na minha idade tudo é paixão.
- Na minha a paixão já morreu.
- Então você é um ancião embalsamado de quarenta anos?
- Não é isso.
- Então explica.
- Acho que sou um pouco cínico para a paixão. Ademais, é melhor conservar o controle.
- Não concordo com isso.
- Quer dizer que paixão é algo bom?
- Depende.
- Odeio oligossílabos. Fale até cansar ou não falamos.
- Usando uma expressão bem lugar-comum, paixão é um mal necessário.
- Ah, é? Convença-me.
- Sabe muito bem que não se pode convencê-lo de nada que já não esteja predisposto a aceitar.
- (sorriso) Você entendeu. Argumente.
- Já leu “Admirável Mundo Novo”?
- Já. Qual o ponto?
- SPV. Sucedâneo de Paixão Violenta, uma vez ao mês. A descarga de adrenalina provocada pela paixão é essencial ao organismo.
- ...
- Você pode até não entender, mas a maioria das pessoas não se sente feliz vivendo num mundo morno, cinza.
- Aí já está extrapolando. Meu mundo não é cinza porque não estou apaixonado.
- Não me referi a isso. Não estou falando de se vincular necessariamente a outra pessoa. Estou falando de marasmo, de falta de entusiasmo pela vida, de tédio, de solidão, de frustração. Estou falando de acordar todos os dias, ao lado de alguém que não ama, ir prum trabalho que não o desafia, ficar preso no trânsito dessa cidade infernal, reprimir seus instintos e desejos até o limite, sem ter nada pra compensar. Entendeu?
- Você está diferente.
- Diferente como?
- Mais dura.
- Não estou sendo dura. Só não me importo mais em ferir o seu ego. Incomoda?
- Não. Não quero que seja doce, pode ferir.
- Nem sei se consigo te ferir...Você parece tão empedernido, às vezes.
- Não sou empedernido.
- Apenas frio, não é?
- (sorriso) Um pouco. Condicionamento.
- Como era mesmo o papo dos oligossílabos?
- O que quer que eu diga?
- Conta uma coisa...
- Pergunte.
- Por que você não muda a sua vida?
- Não tenho grandes ambições. Não a esta altura da minha vida.
- Quer parar com isso? Essa sua mania de se referir a si mesmo como um moribundo centenário me deixa louca.
- Eu me sinto velho. Ultrapassado, até. Uma aberração.
- O que há em você de aberração são só os seus fetiches. (sorriso) Afora isso, você se sente velho porque é um cético mal humorado, anti social e sombrio, que olha pro resto do mundo morto de enfado.
- Como você está eloqüente hoje!
- ...
- Pode ser que você tenha razão.
- Então responda à minha pergunta.
- Eu gosto da minha vida.
- Não, não gosta.
- A questão é que a minha vida é essa. Apesar de tudo, essa é a minha realidade. Não posso ir embora. Já tentei e descobri que a minha raiz está entranhada muito fundo nessa terra, que fora dessas paredes fico desorientado, sem chão. Não amo mais a minha mulher, mas não sei como ficar sem ela. Meu trabalho é tedioso, mas é o que eu faço. Por mais que eu fantasie sobre isso, não vai haver nenhuma mudança. Não há, na verdade, nada melhor pra mim aí fora.
- E por que não me disse isso antes?
- Eu não costumo dizer isso a ninguém.
- Você parece muito diferente do homem que eu conheci.
- Na verdade, não. Eu vivia recluso já naquela época, apenas não gosto muito de alardear essa condição.
- Mesmo a porta da gaiola estando aberta você não sai?
- Não é me fustigando que você vai me fazer sair da gaiola.
- E por que não sai?
- Aqui é seguro. Por mais que pareça sofrido...
- Você é que faz parecer sofrido.
- Eu sei que sim. Mas apesar das minhas muitas reclamações, não é tanto assim. Aqui é confortável, seguro, familiar. Entre essas grades estive a vida toda, aqui aprendi tudo o que eu sei. Aqui estão as minhas referências e as minhas lembranças, boas e más. Por aqui passaram todas as pessoas que já foram importantes pra mim. Tive muitos momentos felizes. Infelizes também, mas é aqui que eu sou eu, é desse jeito que eu sei ser eu. Aí fora pode ser sedutor, pode parecer que há possibilidades infinitas, mas não passa de ilusão. Não tenho anticorpos pro que ainda não conheço e não tenho certeza se posso produzi-los. Por mais que eu quisesse, não sei mais voar e tenho que aceitar isso.
- Que coisa triste. Você vive um personagem.
- De certa forma sim.
- Eu entendo. Quer que feche a porta de novo?
- Não, deixe recostada. Assim ao menos eu tenho a ilusão de que não saio porque não quero.
- Mas é isso mesmo.
- Não. Não saio porque minhas asas não podem mais.
Privação de Sentidos
sábado, 12 de julho de 2008
Domingo
Sempre Pode Piorar
Depois de bater o recorde em imitar saci e desfiar um rosário inteiro de palavrões cabeludos, misteriosamente o dedo começou a doer menos. Santo remédio. Respirei fundo e me propus a começar de novo. Abri a janela e...chovia. Lá fora estava escuro – às nove da manhã – e o céu ostentava um tom plúmbeo capaz de desanimar a própria Poliana. Ainda assim, resolvi que o dia ainda não estava perdido. Tomei um banho quente, saquei o guarda-chuva e saí à rua.
Nem dez passos depois e um carro à toda velocidade passou, espalhando a enxurrada e me deixando encharcada. Talvez tenha sido um modo dele dizer que não tomei banho direito, vai ver esqueci de lavar atrás das orelhas. Maldito, tomara que aquaplane diante do próximo poste! Voltei pra casa e tornei a sair de roupa seca, já menos animada. Eu devia ter entendido o recado óbvio do universo e voltado pra cama, mas segui em frente – agora era questão de honra! Péssima idéia. Durante o correr do dia fiquei presa no elevador, minha unha quebrou, engasguei com café, o computador travou e a alça da mala arrebentou bem quando eu ia fechar. É, ainda tinha isso: eu ia pegar um avião.
O vôo, marcado pra sair às 19:50 do Rio, atrasou para às 20:30. Até aí normal, quem quer que já tenha viajado de avião ou que conheça a Gol ao menos de nome, sabe que nunca sai na hora mesmo. Sem me incomodar, enfiei o nariz num livro policial e o tempo passou sem que eu visse. Como o tempo estava medonho, pegamos turbulência entre Rio e São Paulo – o que já era de se esperar. Os passageiros se agarraram nas poltronas, teve gente rezando e as aeromoças tentavam andar pelo avião sem cair em cima de ninguém. Uma cena grotesca, absolutamente hilária, razão pela qual comecei a rir – baixinho, cá com os meus botões - e, não sei por que, teve gente me olhando feio. Ora, era engraçado mesmo! Medo de morrer? Que nada, se fosse a hora, não ia ter reza que segurasse o avião no ar! E não dava pra acreditar que eu era tão azarada assim: tanto avião pra cair e ia ser justamente o meu? Ah não! Não ia cair e pronto.
Já teve a sensação de que um monte de gente caía fulminada à sua volta? Pois foi o que aconteceu. Por todo o saguão ecoou uma exclamação indignada em uníssono dos pobres passageiros, totalmente desanimados. Corri em busca de um telefone e os três primeiros que tentei estavam com defeito, não completavam a ligação nem à custa de pancada. Nessa hora eu perdi um pouco a minha fleuma, confesso. Que porcaria, oras, tem que acontecer tudo no mesmo dia? Entramos no ônibus pra Guarulhos e de cara o motorista foi apagando a luz, me forçando a guardar o livro – responsável pela minha sanidade até ali. Saco. Não dava pra ver nada da janela e descobri que dormir era impossível, porque sentados nas poltronas da frente estavam o Tonto e o Mais Tonto.
Sentada na sala de embarque, eu esperava que chamassem finalmente o vôo, desesperada pra chegar em casa. Embarcaríamos à meia noite. Quando finalmente anunciaram o embarque, eu quase chorei. Explico: o destino final era Beagá, com escala em Uberlândia – onde eu ficava – mas o aeroporto desta estava fechado por causa do mau tempo e era possível que não pudéssemos descer e tivéssemos que seguir direto e pegar outro avião pela manhã pra voltar.
Sobrevoamos Uberlândia por alguns minutos e conseguimos autorização pra pousar, graças aos céus. Cambaleei escadinha abaixo e, por um momento, temi que a bagagem tivesse extraviado, seguindo o padrão do resto da viagem. Felizmente as malas estavam lá e meu pai também, esperando. Cheguei em casa morta. Caí na cama prometendo a mim mesma que ia começar a ler horóscopo.
sexta-feira, 23 de maio de 2008
Enquanto Você Dormia
Mudou de canal e a televisão mostrou um palestrante de voz monótona, falando sobre trabalho. “O trabalho é que impulsiona o homem. Investimentos, negociações, desafios, competições, lucro, realizações. O homem foi criado para trabalhar e nessa tarefa ele se esmera, se empenha, se esgota até”. Rita riu consigo mesma, com amargura. “É, o trabalho é que move o homem. Mas o trabalho também move a mulher – geralmente na direção de um homem que trabalhe menos que o dela”. Olhou para Chico que roncava cada vez mais alto, exausto do dia de trabalho e teve vontade de chorar.
A vida deles era um inferno. Ele estava tão concentrado em trabalhar, crescer, ter sucesso, ser o melhor, que se tornava cada vez mais ausente e aéreo. Frio, quase indiferente. O pensamento sempre longe, tramando a próxima ação, prevendo reações, planejando. Enquanto ela, Rita, cansada de procurar pelos olhos fugidios do marido, se deitava e assistia à televisão durante horas a fio, incapaz de adormecer, sentindo-se absurdamente vazia. Frustrada, ferida por ser relegada a segundo plano.
O ressentimento pelo tom de voz impessoal, pelo desinteresse por qualquer outro assunto que não fosse o trabalho crescia. Ela se aborrecia ouvindo-o descrever duas, três, cinco vezes o mesmo problema, o mesmo empecilho, a mesma transação. E quando tentava conversar, pedir, demonstrar alguma contrariedade com a ladainha, ele se irritava, acusando-a de falta de companheirismo.
Rita se perguntava, cada vez com mais freqüência, o que é mesmo que estava fazendo ali.
Não conseguia reprimir a sensação de ser inútil, a não ser para os momentos em que, tomado de lubricidade, Chico a procurava entre os lençóis, não se importando se estava dormindo ou se estava disposta. Nesses momentos é que se sentia mais inútil e idiota, ele não a desejava, apenas desaguava nela suas necessidades. Sentia-se prestes a enlouquecer.
Levantou-se da cama e caminhou em direção ao banheiro, arrastando os chinelos, sentindo-se tão arrasada que sequer conseguia endireitar os ombros. Parecia que o peso do mundo vergava-lhe as costas. Acendeu a luz, tirou a roupa e se olhou no espelho. Era jovem ainda, nem atingira os quarenta e vinha se sentindo lixo. Os olhos estavam fundos, o rosto abatido. Mas o corpo era bonito, a cor dos cabelos castanhos era viva, natural, os lábios eram cheios e rosados.
Tocou a própria face, lembrando como os homens costumavam achá-la atraente, o quanto já tinha sido feliz, bonita, amada. E agora? Será que ainda podia?
Pensou no rapaz que a abordara no supermercado naquela mesma tarde. Tão jovem, e tão galanteador. Estaria ele sendo sincero? Outro homem poderia querê-la de verdade, dar-lhe valor? Ah, como desejava inspirar o desejo de um homem novamente, como doía a indiferença do marido!
Suspirando, entrou sob a água mais quente que podia suportar, como se procurasse lavar de si toda a dor, a tristeza, a confusão que vinha sentindo. Esfregou-se vigorosamente, sentiu os músculos relaxarem.
Trinta minutos depois, saía de dentro do boxe para o banheiro enfumaçado sentindo-se bastante melhor. Limpou o embaçado do espelho com a mão molhada, e surpreendeu-se com a própria imagem. Os olhos, antes embaciados, agora brilhavam e as faces estavam coradas. Ante o inesperado, riu satisfeita para si mesma no espelho, notando mais outra coisa: o rosto ainda fazia covinhas quando sorria!
Sentindo-se leve como há tempos não sentia, Rita enxugou-se e passou ao quarto, parando diante do marido, que agora babava pelo canto da boca, espalhado na cama toda.
Repentinamente, a mágoa que vinha alimentando contra o Chico se dissipou e deu lugar a uma intensa sensação de pena, mesclada a alívio. Ele era tão infeliz e nem se dava conta! Era sozinho, não tinha amigos, nem filhos, nem prazeres. Será que ainda perceberia isso? Ao mesmo tempo, teve a certeza de que não amava mais aquele homem, não tinha porque continuar ao lado dele. Sentiu-se livre, pronta para viver outra vez.
Abriu o armário decidida e jogou algumas roupas dentro de uma sacola. Dormiria num hotel pelo resto da madrugada – e boa parte da manhã – e, no dia seguinte, viria pegar o resto de suas coisas. Escreveu um bilhete pra que ele não se preocupasse, embora ela duvidasse disso. Pobre Chico. Trabalhava tanto que não tinha nada. E acabara de perder a mulher.
Amigas
Tea For Two
Possessão
Leo e Bia
Leo era agregado da família da tia, irmã da mãe. A esta, raramente via – vivia mudando, de parceiro e de cidade. Não conhecera o pai, cuja identidade a mãe não tinha certeza. Era um incômodo: recebia casa, comida e má vontade, ocupava um sofá-cama no quartinho dos fundos. O trabalho como balconista rendia-lhe exaustão e salário mínimo, a vida era árida. Mas Leo era infeliz, não resignado. Entrou prum curso noturno e, a despeito das probabilidades, passou na prova do vestibular. Escolheu o curso levando em conta dois fatores: a dificuldade – o que excluiu a Medicina – e o status da profissão, o que tornou o Direito a opção mais indicada. Estava então num mundo novo, absurdamente vistoso e cheio de possibilidades, para quem tivesse visão. Leo sabia a quem deveria agradar e nisso se empenhou. Tornou-se parasita charmoso, desfrutando largamente dos privilégios daqueles que elegera para amigos. Gastava o salário em roupas e freqüentava os melhores lugares – sempre por conta de algum amigo pródigo. Arrumou novo emprego num escritório renomado, por indicação de um herdeiro. A boa aparência e o carisma o tornaram popular com o sexo feminino, e ele cercou-se de muitos exemplares. Finalmente, era tratado como merecia. Vendo-o, julgavam tratar-se de um deles, equívoco que ele fazia questão de estimular.
Bia tinha biótipo de boneca. Olhos grandes e muito azuis, tez muito branca e suave, longos e brilhantes cabelos louros. Longilínea. Delgada. Quase etérea. A princesa dos contos de fadas, se princesas fossem depressivas e tivessem um grave problema de auto-estima. Filha de pais separados, detestava a madrasta e tinha aversão aos filhos do padrasto, razão pela qual os pais montaram-lhe um apartamento na cidade vizinha. Deram-lhe um carro, polpuda mesada e autonomia. Pagavam as contas. A vida era mansa. Raramente ligava para a mãe. Acostumou-se à solidão, embora a odiasse. Talvez para preencher o vazio, envolvia-se incessantemente em problemas. Seus relacionamentos sempre resultavam em lágrimas, como se tivesse mórbido prazer em precisar de drogas para dormir. Entre uma decepção e outra, foi para universidade. Não muito afeita a esforços, escolheu um curso que não exigisse grandes aptidões e a tornasse profissional – o Direito. Foi alvo de grande assédio desde o princípio: aparentava ser o tipo de garota ideal a ser exibida, como um troféu. Entretanto, Bia tinha fome de grandes amores e pendor irresistível a grandes dramas. Queria mistérios, rituais de conquista, obstáculos a serem superados. Algo que a frivolidade dos rapazes não conseguia alcançar e, portanto, nenhum obteve êxito.
Leo e Bia colidiram no campus numa noite fria dessas. Delicada, ela teve um hematoma. Ele a cobriu de atenções – machucara um anjo! Encantaram-se. Ela era o luxo perfeito para arrematar a vida dourada que ele tinha idealizado. Ele trazia nos olhos todo o mistério e a intensidade de que ela precisava. Belos, formaram vistoso casal. O sentimento, arrebatador no princípio, cresceu exponencialmente com o passar dos meses. A paixão era óbvia, até incomodava. Os grandes olhos azuis dela sorriam ao vê-lo, os escuros dele estreitavam-se ainda mais, ardentes. Adotaram como sua a música homônima, considerando um prelúdio do “felizes para sempre”. Pertenciam-se, era um sinal. Criaram pra si um mundo à parte. Ela dedicou-se a ele e afastou-se das amigas, as quais admiraram a entrega e velavam pela felicidade do par. Ele ficou orgulhoso de tê-la consigo – o que nenhum dos amigos conseguira – e procurou conservar apenas os companheiros de farra mais influentes, que envenenavam sutilmente a relação. Independente do que achassem do casal, os colegas habituaram-se a vê-los sempre juntos. Tanto, que não deixaram de notar quando Leo apareceu sozinho por seguidas vezes. Ele não encorajou perguntas, ninguém insistiu. Ao cabo de uma semana, Bia voltou ao braço do namorado, sorridente. Tivera uma gripe, só isso. Estava tudo bem, o incidente foi esquecido. Mas o sorriso de Bia deixara os olhos, mal chegava aos lábios. Leo estava inquieto, suscetível, ciumento. Impetuoso, parecia vigiá-la. Ela empregava toda a energia em ser natural e garantia que tudo corria bem. Tornou-se mais esquiva e ele foi visto de novo em companhia dos amigos dissolutos. Discutiram em público pela primeira vez. Mesmo visivelmente apaixonados, chegara o tempo do drama. Bia empalidecia e Leo assombreava-se. As brigas em público sucediam-se, cada vez mais terríveis, seguidas de tórridas reconciliações. Ninguém se surpreendia mais com a tormenta quando Bia teve outro hematoma, este no pulso. Outro tombo, nada sério, ninguém precisava se preocupar. Ela repeliu aproximações e negou, veemente, que tivesse algum problema. Mas foi internada em seguida e os ferimentos não deixavam margens a enganos. Surda a qualquer argumento, Bia asseverou que a culpa era dela. Não era capaz de entender o quanto Leo a amava e ele apenas mostrava o quanto ela o magoava. Ela tinha que aprender. Afinal, estavam destinados. Leo e Bia tinham que saber se amar. O que ela não considerou é que o primeiro sinal do destino não tinha sido a música e sim o hematoma. Essa consideração coube à mãe, inconsolável quando, semanas depois, o caixão foi velado com a tampa cerrada.
Lívia Santana.
Uberlândia - 06/2005
Imagem: autor desconhecido.