Três da madrugada e Rita se encolhia contra a cabeceira da cama, o quarto iluminado apenas pelo reflexo da televisão ligada. Os olhos ardiam, a cabeça pesava, mas continuava segurando o controle remoto, mudando distraidamente de canal, sem procurar por nada na verdade. O ruído provocado pelo ronco do Chico, deitado ao lado dormindo com a boca aberta, a impedia de pegar no sono e, a cada segundo que passava, a enchia de uma angústia que só aumentava.
Mudou de canal e a televisão mostrou um palestrante de voz monótona, falando sobre trabalho. “O trabalho é que impulsiona o homem. Investimentos, negociações, desafios, competições, lucro, realizações. O homem foi criado para trabalhar e nessa tarefa ele se esmera, se empenha, se esgota até”. Rita riu consigo mesma, com amargura. “É, o trabalho é que move o homem. Mas o trabalho também move a mulher – geralmente na direção de um homem que trabalhe menos que o dela”. Olhou para Chico que roncava cada vez mais alto, exausto do dia de trabalho e teve vontade de chorar.
A vida deles era um inferno. Ele estava tão concentrado em trabalhar, crescer, ter sucesso, ser o melhor, que se tornava cada vez mais ausente e aéreo. Frio, quase indiferente. O pensamento sempre longe, tramando a próxima ação, prevendo reações, planejando. Enquanto ela, Rita, cansada de procurar pelos olhos fugidios do marido, se deitava e assistia à televisão durante horas a fio, incapaz de adormecer, sentindo-se absurdamente vazia. Frustrada, ferida por ser relegada a segundo plano.
O ressentimento pelo tom de voz impessoal, pelo desinteresse por qualquer outro assunto que não fosse o trabalho crescia. Ela se aborrecia ouvindo-o descrever duas, três, cinco vezes o mesmo problema, o mesmo empecilho, a mesma transação. E quando tentava conversar, pedir, demonstrar alguma contrariedade com a ladainha, ele se irritava, acusando-a de falta de companheirismo.
Rita se perguntava, cada vez com mais freqüência, o que é mesmo que estava fazendo ali.
Não conseguia reprimir a sensação de ser inútil, a não ser para os momentos em que, tomado de lubricidade, Chico a procurava entre os lençóis, não se importando se estava dormindo ou se estava disposta. Nesses momentos é que se sentia mais inútil e idiota, ele não a desejava, apenas desaguava nela suas necessidades. Sentia-se prestes a enlouquecer.
Levantou-se da cama e caminhou em direção ao banheiro, arrastando os chinelos, sentindo-se tão arrasada que sequer conseguia endireitar os ombros. Parecia que o peso do mundo vergava-lhe as costas. Acendeu a luz, tirou a roupa e se olhou no espelho. Era jovem ainda, nem atingira os quarenta e vinha se sentindo lixo. Os olhos estavam fundos, o rosto abatido. Mas o corpo era bonito, a cor dos cabelos castanhos era viva, natural, os lábios eram cheios e rosados.
Tocou a própria face, lembrando como os homens costumavam achá-la atraente, o quanto já tinha sido feliz, bonita, amada. E agora? Será que ainda podia?
Pensou no rapaz que a abordara no supermercado naquela mesma tarde. Tão jovem, e tão galanteador. Estaria ele sendo sincero? Outro homem poderia querê-la de verdade, dar-lhe valor? Ah, como desejava inspirar o desejo de um homem novamente, como doía a indiferença do marido!
Suspirando, entrou sob a água mais quente que podia suportar, como se procurasse lavar de si toda a dor, a tristeza, a confusão que vinha sentindo. Esfregou-se vigorosamente, sentiu os músculos relaxarem.
Trinta minutos depois, saía de dentro do boxe para o banheiro enfumaçado sentindo-se bastante melhor. Limpou o embaçado do espelho com a mão molhada, e surpreendeu-se com a própria imagem. Os olhos, antes embaciados, agora brilhavam e as faces estavam coradas. Ante o inesperado, riu satisfeita para si mesma no espelho, notando mais outra coisa: o rosto ainda fazia covinhas quando sorria!
Sentindo-se leve como há tempos não sentia, Rita enxugou-se e passou ao quarto, parando diante do marido, que agora babava pelo canto da boca, espalhado na cama toda.
Repentinamente, a mágoa que vinha alimentando contra o Chico se dissipou e deu lugar a uma intensa sensação de pena, mesclada a alívio. Ele era tão infeliz e nem se dava conta! Era sozinho, não tinha amigos, nem filhos, nem prazeres. Será que ainda perceberia isso? Ao mesmo tempo, teve a certeza de que não amava mais aquele homem, não tinha porque continuar ao lado dele. Sentiu-se livre, pronta para viver outra vez.
Abriu o armário decidida e jogou algumas roupas dentro de uma sacola. Dormiria num hotel pelo resto da madrugada – e boa parte da manhã – e, no dia seguinte, viria pegar o resto de suas coisas. Escreveu um bilhete pra que ele não se preocupasse, embora ela duvidasse disso. Pobre Chico. Trabalhava tanto que não tinha nada. E acabara de perder a mulher.
Mudou de canal e a televisão mostrou um palestrante de voz monótona, falando sobre trabalho. “O trabalho é que impulsiona o homem. Investimentos, negociações, desafios, competições, lucro, realizações. O homem foi criado para trabalhar e nessa tarefa ele se esmera, se empenha, se esgota até”. Rita riu consigo mesma, com amargura. “É, o trabalho é que move o homem. Mas o trabalho também move a mulher – geralmente na direção de um homem que trabalhe menos que o dela”. Olhou para Chico que roncava cada vez mais alto, exausto do dia de trabalho e teve vontade de chorar.
A vida deles era um inferno. Ele estava tão concentrado em trabalhar, crescer, ter sucesso, ser o melhor, que se tornava cada vez mais ausente e aéreo. Frio, quase indiferente. O pensamento sempre longe, tramando a próxima ação, prevendo reações, planejando. Enquanto ela, Rita, cansada de procurar pelos olhos fugidios do marido, se deitava e assistia à televisão durante horas a fio, incapaz de adormecer, sentindo-se absurdamente vazia. Frustrada, ferida por ser relegada a segundo plano.
O ressentimento pelo tom de voz impessoal, pelo desinteresse por qualquer outro assunto que não fosse o trabalho crescia. Ela se aborrecia ouvindo-o descrever duas, três, cinco vezes o mesmo problema, o mesmo empecilho, a mesma transação. E quando tentava conversar, pedir, demonstrar alguma contrariedade com a ladainha, ele se irritava, acusando-a de falta de companheirismo.
Rita se perguntava, cada vez com mais freqüência, o que é mesmo que estava fazendo ali.
Não conseguia reprimir a sensação de ser inútil, a não ser para os momentos em que, tomado de lubricidade, Chico a procurava entre os lençóis, não se importando se estava dormindo ou se estava disposta. Nesses momentos é que se sentia mais inútil e idiota, ele não a desejava, apenas desaguava nela suas necessidades. Sentia-se prestes a enlouquecer.
Levantou-se da cama e caminhou em direção ao banheiro, arrastando os chinelos, sentindo-se tão arrasada que sequer conseguia endireitar os ombros. Parecia que o peso do mundo vergava-lhe as costas. Acendeu a luz, tirou a roupa e se olhou no espelho. Era jovem ainda, nem atingira os quarenta e vinha se sentindo lixo. Os olhos estavam fundos, o rosto abatido. Mas o corpo era bonito, a cor dos cabelos castanhos era viva, natural, os lábios eram cheios e rosados.
Tocou a própria face, lembrando como os homens costumavam achá-la atraente, o quanto já tinha sido feliz, bonita, amada. E agora? Será que ainda podia?
Pensou no rapaz que a abordara no supermercado naquela mesma tarde. Tão jovem, e tão galanteador. Estaria ele sendo sincero? Outro homem poderia querê-la de verdade, dar-lhe valor? Ah, como desejava inspirar o desejo de um homem novamente, como doía a indiferença do marido!
Suspirando, entrou sob a água mais quente que podia suportar, como se procurasse lavar de si toda a dor, a tristeza, a confusão que vinha sentindo. Esfregou-se vigorosamente, sentiu os músculos relaxarem.
Trinta minutos depois, saía de dentro do boxe para o banheiro enfumaçado sentindo-se bastante melhor. Limpou o embaçado do espelho com a mão molhada, e surpreendeu-se com a própria imagem. Os olhos, antes embaciados, agora brilhavam e as faces estavam coradas. Ante o inesperado, riu satisfeita para si mesma no espelho, notando mais outra coisa: o rosto ainda fazia covinhas quando sorria!
Sentindo-se leve como há tempos não sentia, Rita enxugou-se e passou ao quarto, parando diante do marido, que agora babava pelo canto da boca, espalhado na cama toda.
Repentinamente, a mágoa que vinha alimentando contra o Chico se dissipou e deu lugar a uma intensa sensação de pena, mesclada a alívio. Ele era tão infeliz e nem se dava conta! Era sozinho, não tinha amigos, nem filhos, nem prazeres. Será que ainda perceberia isso? Ao mesmo tempo, teve a certeza de que não amava mais aquele homem, não tinha porque continuar ao lado dele. Sentiu-se livre, pronta para viver outra vez.
Abriu o armário decidida e jogou algumas roupas dentro de uma sacola. Dormiria num hotel pelo resto da madrugada – e boa parte da manhã – e, no dia seguinte, viria pegar o resto de suas coisas. Escreveu um bilhete pra que ele não se preocupasse, embora ela duvidasse disso. Pobre Chico. Trabalhava tanto que não tinha nada. E acabara de perder a mulher.
Lívia Santana.
Uberlândia - 07/2005
Imagem: autor desconhecido.
Um comentário:
Coisas da vida...
*CC*
Postar um comentário